Mestra
23 de outubro de 2015
Aquiraz. (Lagoa da Encantada, reserva indígena Jenipapo/Canindé) – Região do Litoral Leste
25 de Março de 1945
Um longo e sinuso caminho em areia de duna leva o visitante à Lagoa da Encantada, em Aquiraz. Da primeira vez que fomos encontrar a Cacique Pequena nos perdemos nas inúmeras bifurcações da estrada. Foi necessária a ajuda de motoqueiro morador local. Depois de localizar a comunidade indígena não foi possível encontrar a Cacique. Um compromisso da liderança causou sua ausência no dia combinado. Marcar de novo não foi nada fácil. A agenda da Cacique é atribulada. Na segunda e bem sucedida visita encontramos Cacique Pequena numa reunião há alguns metros de sua casa. Com moradores da Lagoa da Encantada e agentes externos deliberava sobre questões emergenciais. A sede do Museu Jenipapo-Kanindé nos abrigou e lá Cacique nos contou com voz firme e altiva sobre a memórias de seus antepassados, a primeira mulher a assumir o posto de cacique numa etnia indígena brasileira, e sobre ser Mestra da Cultura. Cacique Pequena nos brindou com uma rodada de cajus de vários tamanhos e cores.
Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.
“Eu sou Cacique e sou guardiã da memória.”
Eu me chamo Maria de Lourdes da Conceição Alves. Conhecida como Cacique Pequena dentro da aldeia e fora da aldeia e, alias, em uma boa parte do Brasil. E a minha profissão é liderar esse povo desde a era de 80. Não um dia nem dois. Tá com mais de trinta anos. Em 95 eu recebi a missão de ser Cacique e até hoje estou sendo essa pessoa da aldeia lutando em favor do meu povo. Tenho 21 anos de Cacique!
Fui Cacique não por brincadeira, nem foi de gaiata. Eu fui Cacique por necessidade. Na aldeia tinha homem adulto, jovem e ancião mas nenhum quis assumir a responsabilidade do Cacique Teodorico. Eu assumi essa responsabilidade, mas eu não sabia o que eu ia fazer e o que eu não ia… Eu apenas era uma mãe, parideira, que já tinha tido a minha formatura de família. Eu queria cuidar dos meus filhos e não cuidar da humanidade. E eu não queria entrar em trabalho que não era aceito por mulher e os outros homens não aceitavam mulher ser Cacique. Mas a comunidade, o povão da aldeia e o advogado da Pastoral Indigenista, pediram muito que eu fizesse esse papel de Cacique porque era importante para o meu povo não ficar desgarrado. E eu disse que não por três vezes, disse que não ia ser nada, que eu apenas era uma mãe de família. E eles insistiram e persistiram e eu aceitei ser a Cacique da aldeia do povo Jenipapo Kanindé.
Quando eu comecei a luta, a trabalhar em defesa do nosso povo
foi porque tinham pessoas que queriam tomar o que era nosso. Pessoas fortes que queriam tomar nossas terras, que queriam tomar a lagoa. Eu lutei! Foi o que eu fiz. E eles, quando disseram que queriam a mim como cacique, foi porque acharam que os onze anos de trabalho, de luta que eu já tinha vinha acordar nosso povo. E foi quando eles acordaram. E eu levei o barco pra frente e até hoje luto em defesa do nosso povo.
Nasceu esta mulher com uma estrela na testa. Posso dizer que eu fui a estrela daqui, que fundei esse lugar. Mas eu não me orgulho, eu me alegro. Eu me alegro de ter fundado esse lugar, de ter levantado o povo que vivia dormindo, há anos e anos e anos atrás. Eu fui a primeira mulher cacique do estado do Ceará, da primeira capital do estado do Ceará e do Brasil. Cabeça chata! E essa mulher já abriu espaço para muitas mulheres criar coragem e também ser cacique.
Até hoje estou sendo essa pessoa, muito respeitada, graças a Deus. Por onde eu ando, todo mundo gosta de mim. Tem um grande respeito por mim e uma grande admiração, porque eu estou levando as coisas todas no pé da letra como deve ser. Sou uma Cacique que trabalhei para ver acontecer as coisas para o povo da aldeia Jenipapo Kanindé.
Uma pessoa que sabe contar as histórias dos antepassados desse lugar. Histórias que os troncos velhos contavam muito – o Cacique Teodorico, meu sogro, meu pai. E tudo isso eu aprendi e me formei a ser uma guardiã da memória. Eu sou Cacique e sou guardiã da memória. Agora, de 2015 pra cá, também passei a ser a Mestre da Cultura do povo Jeninpapo Kanindé.
Eu ouvi muito meus pais dizer que eles tinham sido muito massacrado, muito escravizado. E graças a Deus nós não somos. Por todas as batalhas que eu tenho passado na minha vida com meu povo, nós não sofremos o quanto eles sofreram lá trás. Vivemos com muito sofrimento, mas aguentando. E a gente vai vivendo o dia a dia, com a combinação do tempo que vai passando. A gente vai aprendendo e vai fazendo com que tudo dê certo. A gente não tem nenhum problema grande e forte que venha destruir os índios Jenipapo Kanindé.
Nós temos a luta mas, na nossa luta, nunca houve sangue, nunca. Lutando em defesa do povo Jenipapo Kanindé… eu sou uma pessoa, como Cacique e como liderança que sempre procurei o lado do bem, nunca procurei o lado do mal. Pra todos entenderem que a gente vive num mundo com amor, com paz, com carinho e nada de violência. Porque não existe violência no povo Jenipapo Kanindé.
Eu fui Cacique com a cara e a coragem, sem ter nem um segmento, nem um estudo do Cacique que o Tupã levou. Mas eu estudei por mim mesma pedindo força à natureza, aos encantados das águas, da mata, ao pai Tupã que me formasse uma cacique, uma cacique de verdade, que viesse trabalhar em defesa do meu povo, que viesse lutar por eles sem ter prioridade de outras coisas. E foi assim que eu segui os mandamentos do pai Tupã. Pela própria natureza, pela própria mãe terra, pelos próprios lagos de rio doce e salgado, pelo próprio pai Tupã e pelos encantados das águas e da mata. Essas forças foram meus mestres e os meus professores que vieram me dá luz para iluminar a minha mente e para eu trabalhar com meu povo sem nenhum tipo de agressão, sem nenhum tipo de rancor. Para que eu tivesse aquele amor por eles, aquele carinho que ainda hoje tenho, o que precisou na minha vida foi a força divina.
A cultura indígena não vai se acabar porque não tem só um índio, nem só dois índios no Brasil e todos trabalham em cima da sua cultura, da forma que sabem. A cultura indígena só se acaba se acabar os índios tudim. A gente sabe muito bem o que é cultura: planta é cultura, plantação de mandioca é cultura, colha de cajú é cultura, plantação de legume é cultura, colher algodão é cultura. Pesca é cultura e eu nasci os dentes pescando… Cresci pescando… Vim deixar de pescar quando casei e vim morar aqui na Lagoa da Encantada. Mas continuei as culturas que tinham no próprio lugar pra fazer. Cultura de planta, trabalhando pra plantar feijão, milho, maniva. Raspar mandioca é uma cultura. Tirar goma é uma cultura. Uma meisinha…. uma raspa pra fazer um lambedor, pra fazer um remédio. Tudo é cultura. Agora é cultura de vários tipos. Cultura da meisinha, cultura da farinha, cultura de trabalhar de enxada, a cultura da mandioca, a cultura de fazer colar, a cultura de pescar. Tirar mel de abelha, mel de jandaíra é uma cultura. Fazer esteira de junco, é uma cultura! Fazer cama de cipó, é uma cultura. Apanhar cajú, fazer mocororó, mocororó é a cultura que é a bebida do índio. mocororó do caju azedo. Tudo isso é cultura. Se eu for dizer as culturas que nós temos um dia é pouco para se contar a história da cultura que tem o povo Jeninpapo Kanindé
Quando recebi a notícia que foi escolhida mestra eu não senti nada! Só senti alegria e levantei as mãos pro céu e agradeci ao Pai Tupã, como toda a vida faço: Pai, eu te agradeço por tudo o que o senhor me oferece, dos momentos bons, os momentos ruins, as facilidades, as dificuldades. Eu só estou aqui, porque é consentimento do Pai. Porque eu não sou digna nem de uma folha quando cai sem o consentimento dele, jamais. Sempre a minha vida é essa. Tudo o que acontece comigo, de ruim ou de bom, eu agradeço ao Pai Tupã.
E me pergunto: por qual sentido que sou essas coisas? Não sei e sabendo. Porque tive um grande respeito pelo meu povo, estudei muito a força da natureza e as histórias dos antepassados. Gravei tudo isso na minha memória e hoje eu repasso para as pessoas que chegam aqui, que vem nos visitar: no museu, na pousada. Eu conto tudo, conto a história da minha vida, como eu tive uma vida sofrida e conto as histórias dos antepassados que viveram há muitos anos atrás. Nós aqui já somos a sétima geração. Nós não somos quatro, nem cinco gerações! Quando Pedro Álvares Cabral desocobriu o Brasil a gente já existia.
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