Mestra
16 de maio de 2005
Canindé. Região do Sertão Central
21 de agosto de 1954.
Chegamos em Tarrafas depois da hora marcada, bem atrasados. Mestre Antônio Rafael, num misto de ansiedade e de impaciência, com razão, teve ainda que aguardar enquanto montávamos o cenário para entrevistá-lo. No começo, um pouco descontente, ele observava a adaptação que era feita por nós no ambiente da sala de sua casa – vizinha à Associação dos Artistas do município. Aos poucos, foi ficando menos tenso e, mesmo antes de iniciarmos a gravação, ele ia nos contando sua história, nos mostrando os cordéis e falando de seu programa de rádio. Não se esquivou de repetir novamente tudo o que falou, agora durante a entrevista, que se estendeu até o fim da tarde. Ele gosta de conversar. A entrevista acabou mas a conversa com o poeta prosseguiu na calçada, bem ao gosto cearense, sob o ar já mais fresco do sertão, regada a churrasquinho e boas risadas.
“Lugar de mulher é onde ela se sente bem”
Eu me chamo Dina Maria Martins Lima. Eu nasci na fazenda Barra Cancão, no município de Canindé. Sou filha de José Martins e Olinda Marreiro. Meu pai já faleceu. Nós tínhamos uma fazenda, um terrenozinho, muitas cabeças de gado e eu era a vaqueira da fazenda do meu pai. Nenhum dos meus irmãos quis seguir essa vida de vaqueiro e eu, com idade de sete anos, já começava a ver meu pai arrear bezerro novo, desleitar as vacas e fui criando gosto com a natureza. Meu pai me botava na escola, mas eu nem queria saber da escola. Só queria saber mais era de lidar com a natureza. Quando eu fui crescendo, meu pai me internou em um colégio por nome Santa Clara. Lá eu fiquei alguns anos – dois anos, mais de dois anos… Mas não era aquilo que eu queria, não! Meu pai chegou um dia e perguntou: Dina o que você quer pra ir à escola? Você quer um cavalo, uma bicicleta, um jumento, ou uma novilha de vaca? Eu respondi: papai eu quero um cavalo. Aí eu voltei para o interior de novo. Lá eu comecei a escola. Era aquilo que meu pai mais queria, que eu estudasse. Muitas vezes eu me escondia nos matos, nas moitas de viúva alegre e quando as meninas passavam eu pegava a lição, pegava os cadernos delas e copiava a lição. Um dia, a professora me chamou e convidou meu pai pra ir até a escola. Ela disse para o meu pai que eu estava perdendo muito aula. Meu pai não entendeu: todos os dias ela sai para ir para a escola! A professora falou: então ela desvia o caminho. Meu pai me chamou e perguntou: Dina, mais uma vez, o que você quer: uma bicicleta, um cavalo ou uma pisa grande? Eu disse: papai eu prefiro o cavalo. Pois vai voltar para o colégio interno, vai ficar mais uns tempos internada. Voltei.
Pra mim era a maior tristeza do mundo. Mas todas as sexta-feiras, ao meio dia, eu viajava de volta para o terreno. Lá, eu cuidava do meu cavalo e dos dois cachorros – o Perigo e o Perigoso. Na segunda-feira de manhãzinha eu voltava para o colégio. Tudo que eu queria papai fazia, só para eu estudar.
No mês de junho, chegaram dois fazendeiros na casa do meu pai – e eu fiquei escutando atrás da porta – eu já tinha 16 anos. Eu nunca gostei de cozinhar, nunca gostei de cozinha aí, entrei na cozinha, e disse prá minha irmã: papai tá dizendo que você faça café para os fazendeiros que estão lá fora. E a pobrezinha da minha irmã foi fazer o café e eu fui pra detrás da porta…..
Os fazendeiros disseram: bom dia, compadre Zeca – porque antigamente os fazendeiros só se tratavam por compadre, comadre. Ele respondeu: bom dia! Compadre, a nossa vinda aqui é porque desapareceu uma novilha do nosso rebanho de gado e a gente soube que essa novilha poderia estar no rebanho do seu gado.
Eu escondida,… ouvindo toda a conversa, dizia comigo: papai vai me mandar, mostrar a novilha de vaca aos fazendeiros, se Deus quiser…Meu menino vaqueiro, minha santa Joana D’Arc, meu São Jorge toca no coração de meu pai para que ele mande eu ir mostrar essa novilha de vaca … que é hoje…!!!
Aí o papai me gritou: Dina! Respondi: Senhor Papai. Ele chamou: venha aqui! Eu fui e tomei a benção aos fazendeiros – por que a gente tinha de tomar a benção de pessoas mais velhas que a gente – e falei: bom dia!
Meu pai perguntou: você sabe dizer se tem uma novilha de vaca do compadre Citó que desapareceu, se tá junto com nosso gado? Eu disse: papai eu sei, tá lá na lagoa do São Luis – São Luis era um terreno perto da nossa casa – tá lá, e é muito bonita, uma novilha amarela. Ele então falou: eu vou selar seu cavalo e você vai mostrar a novilha para o compadre Citó. Eu pedi: papai deixe eu usar sua roupa de couro. Ele disse: você quer usar roupa de couro? Quero sim senhor, respondi. Aí, usei uma calça do meu irmão e a roupa de couro do papai todinha. Fiquei morta de feliz, contente da vida! Montei no meu cavalo, chamei o Perigo e o Perigoso, os dois cachorros e saí galopeando. E os vaqueiros querendo falar comigo e eu não dava nem cartaz prá eles. Calada, concentrada.
Quando eu cheguei na lagoa, que a gente avistou a novilha, eu parti prá novilha no meu cavalo e os dois cachorros me ajudaram. Eu separei a novilha e os vaqueiros não viram nem onde eu entrei. Correram atrás de mim e eu atrás da novilha. Peguei a novilha pelo rabo, derrubei com a ajuda dos dois cachorros. Quando os fazendeiros e os vaqueiros chegaram eu já estava com a novilha. O fazendeiro disse: nossa …você é uma menina-mulher muito disposta. E eu entreguei a novilha prá eles. Nós saímos com a novilha e quando chegamos no cercado, lá no curral na casa do meu pai, eu abri a porteira, a novilha mascarada entrou e o fazendeiro gritou: compadre Zé Martins, eu tenho uma novidade prá lhe dizer: quem pegou a novilha foi sua filha! Então papai disse: eu já sabia que ela treinava. Quando eu saio de casa aos sábados para fazer a feira – que antigamente a gente chamava feira – ela fica aqui amansando os burros brabos, botando burros no cercado… Ela é danada … Mas não importa não. Eu entrego nas mãos de Deus, que é isso que ela quer.
E foi sempre o que eu quis. Quando eu estou sendo vaqueira eu me sinto a mulher mais feliz do mundo, muito feliz, ao lado dos meus companheiros. Muito feliz mesmo. Eu me casei com 18 anos, fui morar em uma fazenda. Nesta fazenda tinha duas mil reses. Era no município de Canindé. Fazenda Jacurutu. Meu esposo me deu toda oportunidade na vida. Tanto para estudar como para trabalhar na fazenda. Era um homem muito bom. Eu selava o cavalo de manhã bem cedo e saía para o campo com ele. Eu nunca deixei a vida de vaqueira, sempre foi essa a vida que eu levo. E meus filhos gostam muito do que eu faço. Eu tenho uma filha que é biomédica, outra é enfermeira e um filho que trabalha em empresa. Eles me aceitam como eu sou.
Quando eu comecei a correr em vaquejada alguns homens quiseram me discriminar… Se perguntavam: por que essa mulher que vir correr em vaquejada? Diziam: vai embora prá casa Dina! Lugar de mulher é em casa! Aí eu ria e falava: não, meu companheiro. Lugar de mulher é onde ela se sente bem, e eu me sinto tão bem no meio de vocês!
Mas eu tinha meus amigos que o meu pai me encomendava muito… nossa turminha: Pedro, Fernando, José Augusto Queiroz, Almir… esses meus amigos que eram muito fortes a meu lado. Então eu comecei a conquistar o coração daqueles homens que queriam ser muito machistas… quando eles queriam me discriminar eu não dava cartaz não! Aí é que eu fazia mesmo por onde, sabe?! Eu cantava prá eles na vaquejada.
Fundei uma associação de vaqueiros, boiadeiros. E começou a minha luta de verdade prá continuar a vida de de vaqueira. Mas uma coisa me entristece: não tem uma mulher que queira assumir a vida de vaqueira, que faça o que a Mestra Dina faz. Muitas vão para a associação e com quatro ou cinco meses desistem. Dizem que essa vida não é vida não!
Eu hoje sou mestra da cultura. Muitas coisas mudaram na minha vida. Porque eu viajo muito, represento o Ceará e a nossa cidade de Canindé. Isso para mim foi um privilégio muito grande. Eu sempre pedi a Deus.: “dai-me uma vida prá eu viver, prá eu conhecer culturas diferentes, conhecer outros lugares do mundo. “ E Deus me ouviu e foi uma felicidade muito grande, ser mestra.
Ser Mestra é eu fazer o meu trabalho, com o amor, com o carinho que eu tenho pelos nossos vaqueiros, pelas fazendas, pelos animais. É estar ao lado dos nossos companheiros vaqueiros, participando das aberturas das vaquejadas, quando me chamam, e da Missa de vaqueiros. É mostrar o meu trabalho para as crianças nas escolas para repassar a cultura para aquelas crianças que não sabem o que é a cultura do vaqueiro. Aqui em Canindé tem a Casa do Conto que eu presto serviço voluntário. E através dela eu vou falar nas escolas. Cada vez mais está sendo difícil ensinar a cultura, sobre a vida do campo. Tem muitas crianças que não conhecem, tá cada vez mais se distanciando. Então, na escola, eu conto como foi a minha vida no campo. Repasso o que eu sei, como Mestra. O aboio, através do aboio. A luta a fazer com os animais, com a natureza, e ainda tem o verso. Através de verso, eu repasso o que eu vivi na fazenda e as crianças gostam muito quando eu canto assim:
eu só quero bem a gado porque gado me quer bem / Quando eu chamo o gado urra, quando eu grito o gado vem. Eu não troco o amor de gado pelo amor de ninguém / Ôhôhoooo.
99th Keliling street, Pekanbaru
62+5200-1500-250
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