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Mestra

Dona Zenilda

Francisca Zenilda Soares Ferreira

Mestra em Culinária regional – fabricação artesanal de linguiça

Publicação no Diário Oficial do Estado

15 de Maio de 2018

Cidade/Residência

Assaré (Região do Cariri)

Nascimento

4 de fevereiro de 1933

Relato de Viagem

Uma mansidão altiva. Assim se vislumbra  Dona Zenilda, uma mulher nordestina com quase noventa anos que passou a vida a trabalhar. Seja para ajudar a sustentar a família ou para dar sentido à vida. Seja no seu box do mercado de Assaré, onde recebe centenas de pessoas bem cedinho todos os dias, ou em casa, antigamente fazendo ela própria a linguiça e hoje coordenando sua equipe. São metros e metros de linguiça toda semana distribuindo sabor para o Ceará e o Nordeste presente em todos os cantos do Brasil.

(Cantando)

Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão /  Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.

“Fazer essa linguiça é assim um dote que a pessoa tem.”

Meu nome é Zenilda. Moro aqui em Assaré. Eu faço linguiça e vendo para muitas partes. Para muitos lugares eu vendo. E vendo também bastante aqui, em Assaré. Mando pra Fortaleza… todo canto eu vendo.

Eu aprendi a fazer essa linguiça com minha mãe. Porque ela insistiu muito. Ela dizia: eu vou ensinar a uma de vocês prá quando eu morrer ter uma que faça. As minhas irmãs disseram: não quero esse ramo. E eu respondi: pois eu quero, mamãe. E ela disse: pois é a você mesma que eu vou ensinar. E me ensinou tudo direitinho… tudo. Quando minha mãe morreu, eu tinha uns 18 anos. Hoje eu tô com 87 anos. Faz mais de sessenta anos que eu faço linguiça. Quando ela faleceu eu fiquei dois anos sem esse movimento no comércio, no café.

E minha irmã, que mora no Rio de Janeiro, queria mandar me buscar. Mas o Padre daqui gostava muito de mim e disse: pois você vai se quiser, se não quiser não vai. Confessei ao padre que não queria ir porque não queria deixar minha terra – eu acho bom é aqui, eu não queria a casa dos outros. Eu tinha vontade de me casar e ter minha casa. E o Padre disse que eu não iria. Ele escreveu uma carta para ela dizendo que iria tomar de conta de mim. E o rapaz que eu namorava era sacristão. Finalmente passou uns dois anos, eu me casei e continuei com o café, com o ramo. Meu marido disse que não queria que eu ficasse nessa vida. Mas eu disse que iria trabalhar, pois toda vida trabalhei e eu não gosto de esperar por ninguém.

Aí continuei, continuei e até hoje continuo. Eu nunca deixei de trabalhar. Nunca! E eu levo a minha vida assim. Fazer essa linguiça é um dote que a pessoa tem. E, graças a Deus, é um ramo que dá muito trabalho, mas é bom. É muito cansativo – no dia que eu vou fazer linguiça são três pessoas pinicando carne, duas enchendo e duas furando.

O povo pensa que é só a gente pinicar e botar no funil e encher a tripa. Não bota tempero… Aquelas peles, gorduras (eu não boto muita gordura) . Eu tiro e torro… dá uns dois litros de banha. Aí povo não quer ter despesa. Dá muito trabalho! Muita gente diz que é muito caro. Eu respondo: pois minha gente só tem um meio de resolver: você compra a carne e faz em casa.

Uns anos atrás, mais do que hoje, tinha mais facilidade de a gente arranjar tripa. Hoje é um sacrifício. Tem dia que eu não faço porque não tem tripa. E a tripa, às vezes, é grossa demais, não presta. Mas nesses sessenta anos eu nunca deixei de fazer liguiça. E eu não mudei nada da receita da minha mãe. Essa receita não sei onde minha mãe arranjou. Acho que foi da cabeça dela mesma.

A diferença que tem do tempo de minha mãe para as que eu estou fazendo agora é porque antigamente usava aqueles pilãozinhos, com aquelas mãozinhas de pilão. A gente pilava. Hoje tudo é no liqüidificador. A coisa que mudou foi isso. Mas o tempero não mudou. A minha mãe fazia tudo medido, com as xicaras. Tudo medidozinho. Tem muita gente que faz sem medida; bota aí na doida. Bota o sal sem limite. Bota o tempero sem limite. As coisas todas minhas tem medida. E também, naquela época , não tinha porco de raça. Hoje, se fizer uma linguiça de porco de raça e outra de porco caipira, quando comer as duas se nota logo a diferença.

Não sei porque faz sucesso. Eu nunca fiz propaganda. É porque o povo já se viciou na linguiça, acho. E também conhece a procedência. O povo vem comer no mercado onde eu vendo tapioca com ovo, vendo tapioca com linguiça, eu faço caldo, bolo. Linguiça a gente vende no metro.

Eu faço uma vez ou duas vezes na semana. Principalmente quando tem muita encomenda. Com 10k de carne, tirando os ossos e as gorduras… varia muito… acredito que dê uns seis metros.Fazendo só uma vez por semana, quando sai muitos metros de uma vez, fica só um pouco, e no dia de feira ela se acaba. Não dá prejuízo não. Não dá esses lucros todo, mas também não dá prejuízo.

Eu me sinto muito orgulhosa de ser uma Mestra da Cultura. Porque fui reconhecida. Meu ponto é no mercado e ser reconhecida mudou muito minha vida, vem mais gente.

Já ensinei a diversas pessoas, mas eu não ensino mais. Porque ninguém agradece. Mas ensinei a muita gente. Mas a gente ensina do jeito certo e eles diminuem o tempero, não presta. Tem gente que quer aprender a fazer as coisas e nem quer ter trabalho e nem gastar. Duas coisas que não pode deixar de faze pra aprender.

O negócio é usar aquela quantidade certa… coentro seco, uma xícara de alho, coentro, o vinagre também. E bota um pouquinho de cominho.. Tem gente que diz: eu botei cebola. Nunca ouvi falar que botasse cebola em linguiça. Com as medidas nunca sai errado. Nunca sai salgado, nunca sai insosso. Parece que tem a conta certa.


E Patativa do Assaré que era meu amigo, amigo de meu marido, dizia assim para o povo que chegava lá na casa dele : “vocês não querem comer linguiça,não?! Linguiça de Zenilda!” E eu dizia prá ele: tá fazendo propaganda da minha linguiça? E ele respondia: “ tô. Dizendo que ela é boa, mas se você me fizer raiva eu vou fazer propaganda que ela não presta” . Saía andando nas calçadas rindo. Eu queria muito bem ao Patativa.