Mestra
04 de maio de 2004.
Limoeiro do Norte (Vale do Jaguaribe)
24 de dezembro de 1959.
Uma rua de chão batido com muita sombra de árvores plantadas na frente de todas as casas forma a comunidade Córrego de Areia onde moram vários membros da família “pequeno”, nome herdado do pai. Um espaço híbrido entre urbano e rural nos arredores de Limoeiro do Norte. Mestra Lúcia nos recebe em um dia de domingo e pacientemente nos conta sua história não se importando com a profusão de sons – as motocicletas intermitentes, o forró do som vindo dos automóveis ali parados, a televisão com o programa de domingo, o choro do neto, o balanço da rede do filho, o barulho do galo e das galinhas, dos bodes que passeiam no terreiro, do cachorro e dos gatos. História essa que está amalgamada com a da família – pai, mãe e as irmãs – e com o barro, que lhe deu a sobrevivência e a possibilidade de transforma-se em uma artista de trabalho belo e delicado.
Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.
“O meu trabalho é fino. É feito tudo à mão.”
Meu Nome é Lúcia Rodrigues. Mas todo mundo me conhece por Lúcia Pequeno. Eu nasci no Córrego de Areia. Quando eu nasci, meu pai e minha mãe já trabalhavam nas coisas de barro. Maria, minha irmã, que é mais velha do que eu, começou a trabalhar também. Aí eu via eles trabalhando e comecei a fazer umas coisinhas pequenas e aprendi. Ninguém me ensinou. Eu aprendi só. Todos nós trabalhamos nessa arte. Nessa época eu tinha uns 10 ou 12 anos. Não tinha outra coisa pra fazer, eu fui fazendo e fui gostando. Gosto de fazer.
Meu pai só trabalhava em boneco. No começo, ele fazia pote e uns alguidar bem grande pra cera da carnaúba. Aí ele começou a fazer uns cavalos. O pessoal começou a encomendar e trazer modelos de uns bonecos, ele aprendeu e foi fazendo. Ele fazia uns médicos consultando, fazia dentista, lampião com Maria Bonita na garupa de um cavalo, fazia uns carros de boi. A gente trabalhava pra CEART. Primeiro a gente trabalhava para o pessoal do projeto Rondon, na época que vinha um projeto Rondon para as cidades. No primeiro ano que eles começaram a vir para Limoeiro, eles viram a gente na feira, vendendo nossas coisas e começaram já a encomendar. Todo mês chegava uma equipe e quando ia embora, chegavam outras. Encomendavam a mim, a Maria, a Raimunda. Agora a gente não vai pra feira porque o trabalho é pouco. Quando ia eu gostava. Era eu, papai e mamãe. Todo sábado. Meu pai ia na bicicleta dele com uma caixa na garupa cheia dos bonecos pra vender. Eu e minha mãe, a gente ia a pé – seis quilômetros daqui pra Limoeiro – com um carrego de loiça na cabeça. As que ficavam a gente guardava. O movimento era das sete até às onze horas. Depois a gente voltava de novo à pé de Limoeiro pra casa. Era bom esse tempo. Ôh tempo bom..
Quando eu comecei a fazer as pecinhas pra criança brincar, eu fazia casinhas, fogõezinhos com umas panelinhas em cima, cavalinhos pequenos e até uns carrinhos de barro. Eu trabalhava só nestas coisinhas pequenas. E a gente levava pra feira de Limoeiro. Nessa época, tinha a faculdade de Limoeiro e vinha muito professor de Fortaleza. Eles andavam na feira olhando essas coisas e perguntavam se com um modelo, eu fazia de barro. Eu respondia que sim, faço. E eles começaram a trazer revistas. E eu comecei a fazer essas peças por desenho. Eu olhando uma peça num canto eu faço. Eu chego em casa e faço.
As peças que eu faço hoje mais é o jogo de café, jarro para suco. As fruteirazinhas. É o que mais me encomendam. Minhas irmãs já fazem outras coisas diferentes. A Maria faz as peças da feijoada, a Raimunda faz umas folhas, umas frutas, umas maçãs. Cada qual tem seu tipo e coisa para fazer.
É feito tudo à mão. O meu trabalho é fino. No que a gente começa vai passando a palheta por dentro aí vai afinando. Aquela palheta é quem deixa a peça fina. Vai afinando, vai crescendo, vai abrindo o barro e vai afinando.
Todo esse trabalho demora porque tem que passar três ou quatro dias para o barro ficar mole. Aí tem que começar a peça e deixar endurecer um pouco… Se for com asa, tem que endurecer uns trinta minutos ou mais para colocar a asa. E depois tem de um endurecer mais um pouco pra o beicinho ficar bem duro que a gente pega numa peça e não amasse. Pra poder raspar e alisar com o cabo de pente depois dá o polimento com a pedra.
Primeiro a gente vai no barreiro, na lagoa. Tira o barro, traz o barro seco pra casa. Bota numa vasilha e água, pra ficar mole. Com três ou quatro dias a gente bota num pano e amassa com o pé. Passa mais ou menos uma hora amassando. Depois começa a fazer as peças. A gente senta – precisa de umas tábuas, pra gente fazer em cima, precisa da palheta feita da cuieira pra passar por dentro. Precisa de umas talhinhas feitas do talo da carnaúba. Pra passar por fora eu aliso com o cabo de pente pra tapar os buraquinhos daquelas pedrinhas que ficam e aqueles buraquinhos que fica brilhando é dado com uma pedrinha. Uma peça grande leva um bocado de tempo. Mas uma peça pequena a gente começa e passa a palheta de uma vez só.
Pra queimar as peças?… Maria, minha irmã é quem queima. A gente carrega as loiças pro forno e arruma. Depois faz o fogo de lenha pertinho da boca e fica esquentando. A lenha vai queimando e fazendo aquela brasa e vai empurrando para dentro num talo que tenha cabeça, até ficar bem quente que você joga uma aguinha nos cacos do forno e fica estalando. Depois começa a meter o talo pra dar a queima mesmo. Regula mais ou menos uma meia hora, uma hora – quando tá ventando muito custa mais ou menos uma hora pra terminar de queimar. Quando sai uma fumaça preta tá começando a queimar e quando começa a sair uma fumacinha branca a loiça já esta ficando queimada. Aí a gente olha nas brechas e vê a loiça toda vermelhinha no forno: tá na hora de parar de botar fogo.
Se a gente queimar assim 9 para dez horas da noite, quando é sete ou oito horas da manhã a gente já descobre pra ir correndo aquele ventinho, pra ir esfriando pra gente tirar. Depois que tira do forno a gente só faz passar um pano pra tirar a cinza , enrolar e fazer a embalagem.
Hoje não dá pra sobreviver com a venda das peças. Porque eu trabalho muito pouco. Mas antes eu vivia desse trabalho. Mas hoje eu recebo o salário do Governo do Estado por eu ser Mestre eu fui aposentada com um salário mínimo vitalício.
Virar Mestra foi o pessoal da cultura reconhecendo meu trabalho…
Eu, Maria e Raimunda, nós três trabalhamos pra Ceart, nós vendemos pra Ceart. Aí, esse pessoal da cultura de Fortaleza – e o Governador Lúcio Alcântara, ele dava muito valor à cultura – viu esse nosso trabalho e fez essa escolha de quem trabalhava melhor, ser mestre.
No dia que eu soube que era mestra, que vieram me avisar, Ave Maria! Foi a maior alegria que eu tive na minha vida! Fiquei tão alegre que chorei. Eu ia ser mestra, eu ia ganhar um salário mínimo todos os meses. Eu fiquei tão feliz! Eu tinha dois filhos e do trabalho que eu fazia e o que eu ganhava não dava quase pra sobreviver. Com o salário melhorou tudo. E ainda reconheceu nosso trabalho. Isso serviu pra mim e pra minhas irmãs, porque o pessoal que vinha me visitar reconheceu o trabalho delas também. Compravam de mim e compravam a elas. Foi bom pra mim e pra elas. Elas não são mestres mais ficaram reconhecidas também. Ajudou a vender o trabalho delas, igual ao meu.
Eu gosto demais de fazer as minhas coisas. Passei uns tempos parada porque não estava podendo trabalhar, mas agora eu voltei e vou trabalhar nas minhas coisas sempre. Quando meus filhos eram pequenos eles trabalhavam muito no barro. Faziam carro, trator. Depois que cresceram, começaram a estudar não quiseram mais.
Eu não queria que acabasse essa tradição. Em Limoeiro, sempre me chamam pra ensinar e eu vou. Os meninos do colégio aqui de perto todo ano vem aqui para aprender. Mas parece que eles querem aprender só para dizer que sabem fazer. Porque não tem ninguém fazendo mesmo. Aí não sei se depois que eu morrer vai ficar alguém fazendo esse trabalho. Eu tenho muita vontade que alguém aprenda pra ficar fazendo, porque um trabalho desse tão bonito eu não queria que se acabasse.
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