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MestrA

Maria de Tiê

Maria Josefa da Conceição

Mestra de Dança do Coco e Maneiro-Pau

Publicação no Diário Oficial do Estado

Fortaleza, 26 de fevereiro de 2019

Cidade/Residência

Porteiras

Nascimento

18 de setembro de 1958

Relato de Viagem

Mestra Maria de Tiê é uma pessoa feliz! Foi essa a primeira impressão que ela causou em nós com a animação contagiante com que nos recebeu em seu Sítio Vassourinhas, no alto da serra, e que foi se confirmando ao longo do dia. Ela já havia convocado o seu grupo para dançar. Convocação é a palavra certa. A Mestra é sem dúvida uma liderança do lugar. E todos que estavam ali sentiam-se acolhidos e muito familiarizados com o local. O colorido das roupas somado a animação dos companheiros e companheiras de grupo fez ser apresentação um show e tanto. E quem disse que queriam parar?

(Cantando)

Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão /  Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.

“Levantei minha cabeça, porque eu era negra. E como eu era uma mulher negra eu tinha de mostrar o que eu era.”

Eu sou Maria Josefa da Conceição. Conhecida, no meu trabalho, como Maria de Tiê. Nasci, me criei e vivo no Sítio Vassourinhas, município de Porteiras. Filha natural de Porteiras. Desde pequena já via meu pai trabalhar com a cultura. Meu pai era uma pessoa que fazia embolada. Ele tinha grupo de coco, maneiro pau, bumba-meu-boi, banda cabaçal e ainda era decurião.

Meu pai ia fazer os trabalhos dele, as brincadeiras e sempre nós acompanhávamos. Nesse tempo a gente não tinha o que se tem hoje. O divertimento do pessoal de antes era a dança do coco, maneiro pau e a banda cabaçal. Quando terminava as “renovação” ele brincava o coco, tocava o maneiro pau, ele brincava de tudo. Nós não tínhamos outro divertimento. Mas nós nunca sabíamos que era uma cultura, uma história. Nós brincávamos porque era nossa brincadeira, divertimento.

De um certo tempo, 2005 para cá, é que foi descoberto que nós éramos remanescentes. Nós fomos descobertos como remanescentes de quilombo, de escravo. O meu avô, Raimundo Valentim de Sousa, mais conhecido como Raimundo Preto, era escravo e foi fugido. Mas não sabia que fosse uma história que tinha que a gente contar hoje.

Ele criou os filhos, criou os netos. Tudo naquela tradição dele, na mesma história, na mesma dança. Mas não sabia o que significava. Então, só depois que foi descoberto que nós somos quilombolas – remanescentes de escravos que eram fugidos para o quilombo.

Nosso conhecimento veio de nosso bisavô que fugiu de Pernambuco pra comunidade de Porteiras. Ficou escondido. Ele veio rapaz. Encontrou uma moça, se casou, formou uma família. Então dessa família hoje existe os netos, os bisnetos que estão levando essa tradição que eles deixaram.

Do tempo que foi descoberto o quilombo, muita gente tinha medo. Muita gente fechava as portas, com medo daquelas pessoas que vinham. Ninguém tinha estudo. Não podia estudar porque não tinha condições de estudar. E então nós tínhamos medo do pessoal que vinha. E eu fiquei aqui e me casei. Vim morar aqui, que é uma comunidade só. Fiquei aqui guardadinha em meu canto, mas prestando atenção àquele trabalho que tava tendo de quilombo. Porque nós sentimos muito preconceito no passado por sermos negros. Preconceito pela cor, pelo cabelo. E preconceito é uma coisa que deixa a pessoa triste.

Quando foi descoberto o quilombo, muita gente dizia assim “quilombola”. Achavam que era uma coisa ruim. Muitos ainda tiveram preconceito pelo quilombo. Mas eu não tive medo do preconceito. Eu enfrentei, eu enfrentei e entrei na luta. Criei uma associação e fui trabalhar sem medo. Levantei minha cabeça, porque eu era negra. E como eu era uma mulher negra eu tinha de mostrar o que eu era.

Segui em frente. Levei a cultura. Resgatei aquilo que meu pai deixou. Uns diziam assim: Maria de Tiê não vai saber cantar. Maria de Tiê não vai saber levar esse trabalho. Aí eu disse: eu sei que eu sou filha de Luis Manoel de Sousa. O que meu pai sabia, eu sei. Eu vou resgatar essa cultura e vou mostrar a vocês que nós vamos em frente com nosso trabalho.

Comecei em 2011. Chamei esse grupo: “vamos, minha gente, ensaiar?! Vamos, minha gente, resgatar o que está enterrado. Porque eu vou atrás. Então eu fui atrás junto com meu tio, João Manoel de Sousa, irmão de meu pai. É o supremo do quilombo! Já está bem velhinho, doente. E então levei em frente meu trabalho. Depois que eu criei a associação, fomos tendo conhecimento. Foi vindo gente de fora a minha procura e eu fui mostrando o que eu era, com aquelas toadas que meu pai deixou. Depois eu fiz as minhas mesmas. Mas nunca deixo de levar o que meu pai fez. Ele não brincava só. No tempo dos cocos, ele brincava mais os colegas no pandeiro e ele com a maraca. As maracas de antigamente chama ganzá. O ganzá dele era uma lata. Botava chechos e balançava, chacoalhava o ganzá e o colega dele no pandeiro. O colega tirava a toada e o meu pai e minha mãe respondiam, e nós na pisada mais ele. Não era coisa de minuto, nem dez minutos, nem quinze minutos. Era de seis da noite às seis da manhã. Eles dançavam com vontade porque era uma coisa gostosa e era muito bom.

Tinha um barreiro?… Nós dizíamos: hoje vamos aterrar o barreiro lá de Enock. Como é que gente vai aterrar o barreiro? Vamos aterrar na pisada. Então juntava todo mundo e ia dançar o coco dentro do barreiro. Já ouviu falar em coco duro? O povo não sabe o que é coco duro. Hoje o povo tem que ter uma parelha para dançar. Antigamente não! No tempo que o coco foi criado – coco que foi criado da natureza, da terra – era chamado coco duro. Dançava homem com homem, mulher com mulher, homem com mulher. E levava a pisada! E ainda tinha um trancelim. Quem pudesse tinha um trancelim nas pernas para a pisada. E meu pai era exigente. Se você errasse ele dizia: “Óh, tá desigual… vamo aprumar a pisada!”. Hoje a gente dança de todo jeito, porque muitos não sabem. Eu não vou exigir. Eu quero que eles dancem, quem não sabe vai aprender.

As crianças eu estou ensinando e dançar e cantar. Então, tem um idoso que entra na dança, não sabe… vai aprender. Eu aprendi a tradição depois de velha. Para aprender não tem idade. É só a pessoa querer e entrar. E porque não sabe eu não posso desistir daquela pessoa. Tenho de insistir naquela pessoa tá no grupo. Porque jamais eu vou dispensar ninguém que entra. Eu vou a uma apresentação fora, eu acho lindo aquelas pessoas que não sabem dançar e que quando eu balanço o pandeiro todo mundo entra na dança, todo mundo dança e eu acho lindo quem não sabe dançar, dançar. Que se está aprendendo tá me dando força cada vez mais você entrar na dança mais a gente tá tendo energia para cantar, para dançar.

O quilombo foi descoberto pela dança do coco. A primeira-dama de Porteiras, foi num encontro fora do Brasil, e lá ela descobriu que aqui em Porteiras tinha remanescentes quilombolas. E os remanescentes quilombolas eram os Sousas. Então, os Sousas somos nós.

Muitos não queriam aceitar porque nunca tinham ouvido falar o que era quilombola. Ouvia falar na televisão, mas assim ao vivo, como nós somos, ninguém dizia essa história de quilombola. Até hoje tem muita gente aqui no município de Porteiras que não sabe o que é quilombola

A gente tem de dizer o que é quilombola… muitos não dão valor a sua cor, a sua origem. Eu me sinto orgulhosa de ser quilombola. Eu me sinto orgulhosa de ser negra porque eu não posso negar minha origem, eu não posso negar minha cor… Se eu sou filha de um negro. Se eu sou neta e bisneta de um negro, eu não posso ser galega. Eu tenho orgulho de ser negra. Adoro um negro porque sou negra também, Adoro um branco também, porque o branco me adora. Por isso a gente tem de respeitar o negro, respeitar o branco, respeitar o cabelo bom, respeitar o louro, respeitar todos.

Eu fico me perguntando como eu cheguei a ser Mestra? Eu não esperava. Eu nunca pensei na minha vida de hoje eu ser uma Mestra da Cultura. Porque eu não tinha essa expectativa de ser Mestra. Eu entrei na roda, eu entrei no grupo, entrei na dança, na cultura, tradição. Mas eu não entrei pensando de eu ter um Tesouro Vivo. Os meus documentos de Mestra foram feitos com a dança do coco e com o maneiro-pau. Então é isso que que tenho de mostrar. Essa tradição da dança do coco e do maneiro-pau veio do quilombo, que já veio do escravo. Tem que mostrar e tem de falar. Veio do passado mesmo, dos mais velhos que passou de geração para geração.

Mas ser Mestra, eu acho que é um respeito que a gente tem pelas pessoas, pela comunidade, pelo trabalho, pelas pessoas que sempre me procuram, pelas aquelas oficinas que eu tenho passado pro povo, e o povo passa para mim. Eu nunca perdi uma oficina e nem uma roda de conversa e também nunca perdi entrevista. Sempre que o povo me pergunta, procura, eu tenho para responder. O pessoal me respeita muito por ser Mestra. Se tem alguém que não me dá valor, mas milhares me dá valor pelo que sou. E por isso que tenho muito orgulho de ser Mestra. Para eu passar muitas coisas boas para as pessoas que me perguntam, que me procuram e que acreditam em mim e no meu trabalho

Com as novas gerações – com as crianças e também tem gente que não é criança – sempre eu passo para eles que a cultura está acima de tudo. A gente conhecer uma cultura, ter um conhecimento tanto da parte da comunidade negra – porque tem muita comunidade que não é quilombola mas trabalha pelas mulheres negras, pelo direito de ser negro. E eu passo para eles também aprender cantar, dançar e respeitar o amigo, a amiga, seja quem for, a gente tem de respeitar.

E eu vou na escola que está ensinando a ler e a escrever e vou passar o meu saber de Mestra. Com tradição, com respeito, de geração para geração. Se eu não passar o que eu sei para as novas gerações, amanhã eu posso não estar aqui e levo meu saber comigo. Eu tenho um prazer de passar o meu saber para as pessoas. Eu chamo as crianças e os jovens para virem para o grupo. Para eles aprenderem um pouco do conhecimento como eu aprendi. A gente não nasce aprendida. A gente aprende com quem sabe.