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Mestre

Cacique João Venâncio

Francisco Furtado Sobrinho

Mestre da Cultura Indígena

Publicação no Diário Oficial do Estado

22 de outubro de 2008.

Cidade/Residência

Itarema – Região do Litoral Oeste.

Nascimento

30 de janeiro de 1955.

Relato de Viagem

Num domingo de chuva torrencial em Almofala encontramos o Cacique João Venâncio descansando na sua rede na parte da casa – onde mora sua familia, que ele escolheu para viver: uma choupana no quintal com telhado de palha e um quarto feito de taipa. O Cacique preserva os cabelos longos e está sempre com seus colares e anéis. Já o cocar faz parte da indumentária para fotos, aulas, apresentações e entrevistas. Bem articulado e ciente de seu papel como interlocutor da sua comunidade indígena com o resto do mundo, trabalha, junto com o Pajé, também Mestre da Cultura, para proteger as terras e os costumes dos Tremembés. A bem equipada escola diferenciada, de estrutura circular com uma grande roda pintada no chão, é contígua à casa do Mestre que observa de perto as atividades buscando a manutenção da tradição da sua etnia.

(Cantando)

Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão /  Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.

“Pra nós Tremembés, o que vemos ao redor de nós, tudo é sagrado.”

Meu nome de assinação de documento é Francisco Marques do Nascimento. Mas o o nome conhecido no aldeiamento, de trabalho, é Cacique João Venâncio. Porque João Venancio? Porque vem da minha mãe que se chamava Venância e começaram a me chamar João da Venância. Então são estes dois nomes que eu carrego hoje comigo. Um é o nome de vivência de vida e o outro é de assinação de documento.

Eu alcancei a minha bisavó sendo a chefe da família, do aldeamento. Ela era uma curadeira de mão cheia, de tudo ela rezava, de tudo ela curava. Quando ela faleceu ficou a minha avó cuidando no lugar dela. Ficou cuidando das coisas e, quando as pessoas procuravam alguma informação, procuravam ela. Era minha avó quem dava essas entrevistas, quem falava a história dos conhecimentos do povo Tremembé, falava em nome do povo.

Depois foi o tempo da minha mãe e eu comecei a perceber que a minha mãe ia faltar um dia. E fui vendo também – nem primo, nem sobrinho – que ninguém se prontificou a tomar essa responsabilidade de ficar no lugar. Então tinha que ter alguém pra ficar, pra falar aquelas coisas que eu ouvia ela falar. E comecei a participar do movimento, das atividades com ela. Andar nas reuniões e acabou que ela faleceu.

Quando ela faleceu, eu fiquei no lugar dela. Participando das ações, das atividades, das reuniões e foi aí que me deram a patente de liderança indígena. E eu trabalhei uma temporada como liderança indígena e depois recebi o cargo de cacique, em termo de aldeiamento do povo Tremembé, numa reunião grande que eu fui referendado. A partir daquele dia eu era o Cacique do aldeiamento. E aqui estou hoje cumprindo uma função de cacique, de luta, de trabalho, compromisso, de responsabilidade junto do meu povo.

Somos eu e o outro companheiro que é o Pajé. Fomos os grandes articuladores do movimento indígena no estado do Ceará e hoje temos quatro grupos reconhecidos oficialmente pelo órgão indigenista da FUNAI. Estamos trabalhando para que quatorze etnias sejam reconhecidas, assim como nós temos os quatro reconhecidos oficialmente, e por um desenvolvimento de trabalho, de compromisso. A gente vem fazendo isso desde criança, mas não era muito visto. A gente tem esse trabalho, essa função, muitas coisas a gente sabe fazer, desenvolve a cultura e foi aí que a gente acabou sendo inserido na questão dos mestres da cultura.

Quando eu recebi o título de Mestre, o que eu percebi na minha vida? Mais responsabilidade com a comunidade, mais compromisso, mais algo a fazer e que isso tinha de ser repassado. O papel da gente hoje, como liderança, é passar tudo que a gente aprendeu com os antepassados. Passar para a nossa juventude, pra nossa criançada. Para que eles possam se criar sabendo a história, sabendo a cultura que eles tinham, qual é a origem deles, a quem é que eles pertencem. Então isso veio só aumentar uma responsabilidade de compromisso em cada um de nós dois. O povo Tremembé é o único povo que tem dois Mestres da Cultura diplomado e se sente muito honrado.

Foi muito bom dentro da comunidade porque hoje a gente tem um ponto de referencia, um reconhecimento de referência como Mestre da Cultura por onde a gente passa. Então fortaleceu o nome da gente, o trabalho que a gente fazia desde criança que não era visto, que não era considerado. Ninguém olhava a gente com bons olhos. A partir desse momento a gente tem um grande respeito na comunidade, aumentou este respeito como Mestre da Cultura.

A gente tem uma função muito grande, sendo chamado pra dar aula, pra dar palestra nas escolas. Até a universidade já chamou. Em 2014 a gente deu três módulos de disciplina: “espiritualidade, torém e vivência Tremembé”. Na universidade! Fomos pagos do jeito de um professor que tem títulos, tem seu diploma. A gente foi pago da mesma forma. E a gente também é muito procurado por alunos que querem defender suas teses de mestrado, de doutorado.

A gente ensina os meninos os rituais sagrados, a dança, o porquê está dançando, o que significa. Porque nós temos várias formas de cultura. O torém é uma dança muito específica que só quem tem é o povo Tremembé. Mas nós temos a dança da aranha, a dança da bulieira, a dança do caçador, a dança do coco. Tudo isso a gente vem passando para a criançada, para eles aprenderem a vivência da vida, com os costumes e tradição que nossos antepassados tinham. Que é pra quando chegar certa idade eles não terem vergonha, não sonegar quem eles são.

A gente trabalha a diferença na escola que temos aqui. Na escola diferenciada qualquer um é recebido do mesmo jeito porque a escola não pode fazer discriminação. Isso é a diferença que faz. Na escola convencional a gente chega e tem um portão e um vigia no pé do portão. O aluno que chega atrasado, ele não entra mais. Aqui na nossa escola o portão é aberto. O menino que chegar em cima da hora da aula ele entra. Aquele que chegou atrasado entra do mesmo jeito. Aquele que chegar todo empacotado – como diz a história – é recebido do mesmo jeito como aquele que chega com o pé no chão, de calção com uma camisa no ombro.

Os professores da escola, o diretor, as merendeiras, os coordenadores são indígenas. Nós só podemos ter uma escola diferenciada exatamente se tiver este encaminhamento: desde o professor, até o vigia, diretor, merendeira, todos serem indígenas. Porque se não for assim nós não podemos dizer que temos uma escola diferenciada indígena.

O professor faz a pesquisa com nossos anciãos, com nossos mais velhos e ele transforma essa pesquisa em texto e ele vai passar em sala de aula para as crianças. Isso é uma grande diferença que a gente tem. A questão da merenda dos meninos… É diferenciado também porque é o peixe assado na brasa, com grolado, com a tapioca, com cuscuz, é a cambica de batata… então tudo da gente é diferente mesmo.

E ainda temos um outro lado riquíssimo que é a questão da medicina tradicional. A gente só procura o médico quando o nosso meio medicinal não dá jeito. Os nossos xaropes, nossos chás, nossas garrafadas, nossa meisinha, nosso lambedor. Quando a gente vê que não resolve, aí sim a gente procura o médico. Mas enquanto está resolvendo a gente é curado pela nossa medicina tradicional indígena.

Pra nós Tremembés, o que nós vemos ao redor de nós, tudo é sagrado. A natureza é sagrada e pra nós, é que nem o pai e mãe, que todo dia a gente vai lá e estende a mão pedindo a benção. Porque sem a natureza a gente não pode viver. Porque a natureza é quem dá o pão, é quem dá o sangue, é quem dá a água, é quem dá a alimentação. Se não fosse a natureza a gente não tinha nada disso. O que eu quero é recomendar a nossa juventude de hoje que temos de cuidar, preservar e zelar a nossa santa mãe natureza porque sem ela nós não somos ninguém.