Mestre
16 de maio de 2005.
Fortaleza.
4 de dezembro de 1946.
O Museu Indígena do Povo Kanindé, no Sítio Fernandes, em Aratuba é sem sombra de dúvidas um exemplo de resistência da cultura indígena no Ceará. Mestre Cacique Sotero criou o Museu como forma de mostrar ao seu povo uma história que não deveria ser esquecida. Em nosso encontro, na sua casa, o Mestre nos contou como foi o despertar dessa consciência, ainda cedo na infância. Nos falou com emoção das críticas e ofensas que sofreram por terem se assumido indígenas e de sua paixão pelo conhecimento de suas origens e costumes ancestrais e que com isso se fortaleceu e virou Mestre da Cultura.
Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.
“Sou um historiador de contar e guardar a história”
Meu nome é José Maria Pereira dos Santos. Sou o cacique Sotero, da Aldeia indígena Kanindé, em Aratuba. Sou mestre da cultura indígena. Eu vivo, nasci e me criei aqui. Sou filho de Lafaiete Francisco dos Santos e de Maria Pereira dos Santos. E eu me reconheci sob e dentro da nossa história indígena, desde os antepassados que era meu avô, minha avó, meus pais e hoje tô na minha idade, de 78 anos, vivendo aqui nesta aldeia indígena dos Kanindé. Kanindé com K. Essa é a nossa origem. E este nome de Sotero foi meu avô que botou esse apelido. Disse minha mãe que foi quando eu tinha três anos de nascido.
Eu me entendi como índio desde eu criança, quando eu nasci. Eu quis sempre conhecer a história do meu povo. Essa história eu perguntava – que eu sempre fui muito curioso, fazia muita pergunta – e ouvia de meu avô, do meu bisavô, que eu conheci eles e eles já foram falando em índio.
Eu criança, tinha nessa base de uns dez anos. Eu saia para o mato mais um irmão meu. Caçar passarinho para comer o coração, que a gente chamava de Beija-Flor. Isso era para gente ficar bom atirador. Tinha também uns passarinhos em que a gente chamava de Mané Chico. Ainda tem muitos. A gente matava, depenava e lá no mato mesmo comia, e achava bom. Ficava muito dentro do mato. E as pessoas ficavam chamando a gente de índio
Um dia a gente achou uma pedrinha preta de rutilo. Quando eu cheguei do mato, mostrei a minha mãe. E ela me disse “tu guarda essa pedra, que essa pedra é dos índios escrever o nome deles nas outras pedras e você aguarde que depois ele vai servir para vocês botarem num museu.” E eu guardei a pedra, e essa pedra está no museu hoje.
Quando foi em 1995, nós fomos convidados para o encontro de indígenas em Maracanaú. Quem nos convidou, eu e meu irmão, foi Maria Amélia que era da missão Tremembé, uma associação dos índios Tremembés. E ela conhecia a gente aqui na Serra de Aratuba, porque ela trabalhava na casa paroquial. Ela achou a gente muito parecido com índio: as nossas feições, as nossas falas, o nosso jeito. Com esse convite nós fomos a esse encontro lá em Maracanaú. Lá a gente encontrou os Tremembés, os Tapebas, os Pitaguary, os Jenipapo Canindé e também os daquela região de Crateús. E nós passamos quatro dias em cima da Serra da Monguba. E lá foi que eu me lembrei da pedra que eu tinha achado, e do que minha mãe tinha dito – que era para eu guardar aquela pedra porque ela podia ir para um museu para dizer que era dos índios, que era o lápis que eles escreviam com a pedra nas paredes, nas pedras.
E quando nós chegamos em Aratuba de volta, eu e meu irmão, fizemos uma reunião e convidamos nossos tios, um povo já bem maduro. Quando nós dissemos o que era que nós tínhamos ido fazer em Maracanaú, eles contaram a nossa história e disseram que a gente era de um povo indígena.
Foi depois desse primeiro encontro que nós tivemos coragem de nos assumir. A gente vem se assumindo, ajuntando o povo e criando força, mesmo sendo criticado pelo homem branco, por aqueles que não acreditavam na nossa história indígena. E a gente vem se fortalecendo. Não foi muito fácil não. Porque no começo fomos muito criticado, levamos muito nome de ladrão, de querer se aproveitar do governo. Era aquela história de que a gente não era índio.
E fomos se fortalecendo. E fomos crescendo. Hoje nós estamos aqui nesta aldeia, nós já temos quase 1000 índios cadastrados e reconhecidos pela Funai, pela saúde, educação. Uma quantidade boa para contar nossa história. Hoje eu sou o Cacique. Fui escolhido numa reunião, aqui na aldeia. Eu e o Pajé. Porque por onde a gente andava, lá nas outras aldeias, havia o Cacique e o Pajé. Desde esse tempo até hoje ainda estou sendo o Cacique da aldeia. Por hora só é um cacique e um pajé, porque nós só somos uma etnia. Aqui em Aratuba e no município de Canindé. Como Cacique a gente fica viajando para visitar outras comunidades, outras aldeias indígenas e vai juntando forças.
Quando a gente faz as reuniões os encontros das aldeias, a união é boa, é grande. A gente é louco para trabalhar em comum. E quando a gente trabalha junto e se reúne fica sendo uma coisa forte.
O museu aqui do Sítio Fernandes, de Aratuba começou da pedra. Ele começou dessa pedrinha que eu achei. Cheguei na minha casa, que agora é só Museu, eu botei uma mesinha, na sala, e botei a pedra. E comecei a juntar as coisas que a gente achava aqui na aldeia. A machadinha – uma coisa linda que nós temos no museu. A gente achou o cachimbo e outras coisas, que, segundo dizem os mais velhos, era o que os índios usavam.
E o museu foi crescendo, crescendo. Hoje temos um museu bem começado. No museu, eu me baseei muito na minha curiosidade. Se você ver o museu ele tem muita caça e tem muito couro de caça. Tudo empanado, tudo costurado. Porque nós aqui somos de um povo que gostavam muito de caçar. Isso era antigamente. Hoje ninguém pode caçar mais por causa que as caças estão ficando extintas. E as matas estão se acabando, estão mais diferentes. A gente não caça mais como antes. Mas a gente ainda come. A caça que nós gostamos é o peba, o tatu, preá, gato maracajá, veado, tejo, camaleão. De todo tipo.
O Museu e meu conhecimento trouxe uma coisa importante. Trouxe o título de Mestre da Cultura Foi pelo meu conhecimento e pelo dom que Deus, nosso pai Tupã, me deu. Esse conhecimento que eu aprendi, o conhecimento da história velha, eu deixo dentro da nossa aldeia. É a história do meu avô, a história do meu bisavô. É sobre as matas, sobre o meio ambiente, sobre os nativos. Sobre os encantados. Essas são coisas que nós temos nas nossas matas.
Sou um historiador de contar e guardar a história, mas não de escrever. Eu não tenho leitura. Conto história de um passado que ajuda muita gente ser um historiador. Uma história de verdade, do que a gente conheceu, conto o que meus pais diziam, o que meu avô dizia e o que eu cheguei a ver na minha idade que eu estou. Já meu filho, Elenilson, é historiador no lápis e no computador.
E eu conto nossa história para os mais novos. Eu ensino. Eles vêm para esse terreiro que nós estamos. Eu vou para escola indígena e dou aula a eles dessa história que eu estou contando, eu passo para os nossos alunos. Do meu passado e do meu povo, nada ficou escrito. Se eu não tiver ainda um pouco dessa memória e ainda me lembrar de como foi o passado, como eu estou contando, pode se perder. Mas agora, de certos tempo para cá, para os mais novos está ficando tudo em um discos. Está ficando em CD, está ficando em papel. Eu creio que eles vão ter muito mais facilidade de contar a história para os filhos deles. Hoje eles têm chance para escrever, pra ler. E eu tenho esperança que essa história não se acabe.
Quando eu recebi o título de Mestre da Cultura, para mim, foi uma alegria tão grande que eu chorei. Não nego que eu chorei. No dia que eu fui receber o Diploma, lá em Sobral, o Reitor da Universidade disse que daquele dia em diante, se eu já era doutor, se eu já era historiador, agora que eu tinha mais história para contar.
Mas eu queria ser novo hoje para ter mais força para contar as coisas que eu vi, que eu fiz, que eu passei por ela.
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