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Mestre

Chico Bento Calungueiro

Francisco Furtado Sobrinho

Mestre em Teatro de Bonecos – Mamulengo

Publicação no Diário Oficial do Estado

15 de maio de 2018

Cidade/Residência

Trairi (Região Oeste)

Nascimento

6 de maio de 1957

Relato de Viagem

Na zona rural de Trairi vive o mestre Chico Bento Calungueiro. Um homem de imaginação fértil, que inventa, estuda, investiga e descobre como fazer as articulações para fazer piscar os olhos, mexer boca, pernas, dar vida aos bonecos que tanto ama e dá sentido a sua existência. De fala ligeira e vívidos olhos, conversou conosco rodeado por seus muitos bonecos, que carregam sua ânima, construídos com inventividade e amor de um artista-escultor, como ele mesmo se autodenomina.

(Cantando)

Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão /  Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.

“Eu sou um profissional de fazer o boneco”

O meu nome é Francisco Furtado Sobrinho, mais conhecido como Chico Bento porque meu pai era Bento e a minha mãe era Rita Furtado de Souza. Bem, eu nasci acima do açude, no Córrego, minha terra natal, no município de Trairi, estado do Ceará e absolutamente do Brasil todo.

Lá chamava Açude dos Touros porque três touros lá bebiam água. Cresci, fui ficando ativo. Comecei bem miudinho trabalhando. Primeiramente na agricultura. Segundo, eu comecei com o boi, não foi com reisado, nem foi com boneco. Mas deixei todos e caí no estilo de boneco. Só que um dia o papai chegou lá em casa, de noite, e disse:“ velha, vamos hoje para uns calungas lá na cumade”. Ali, uma parente da finada Ernesta, que era minha vó.

Foi aí que eu vi o primeiro bonequeiro. Se chamava João Maia. Eu tinha uns 12 anos. Quando eu vi ele comendo fogo e puxando a mágica…Eu disse aqui comigo : Como é que este homem faz isso? Comer fogo! Puxar uma coisa de dentro dos intestinos ! E eu fui ficando impressionado, sabe?! E eu vendo aquele negócio… Depois da mágica, foi que ele foi botar o boneco. E eu pensei que era vivo, uma coisa viva. Ele botando os bonecos… aí houve uma briga lá de boneco. Depois veio a alma! Rapaz, eu fiquei com medo dessa alma, viu?! Quando foi a noite eu fui dormir. Eu sonhei. Eu quase me assombro. Minha mãe disse: “Chico, aquilo era uma alma dos calungas, num é viva não!”

O segundo bonequeiro que eu vi chamava Lourisval do Maranhão. Eu já era maiorzinho. Meu pai – que era sanfoneiro, tocador de banjo que se fosse hoje, ele era Mestre da Cultura e tinha carteira – me levou. Primeiro, ele fez a mágica: ele ficava de cabeça pra baixo e o fundo pra cima dos pés, contando uma história da abelha, que fazia “vruuum, vruuumm”. Quando ele botou os bonecos, tinha a alma!

Com a continuação do tempo aquilo foi dando uma coisa em mim. Aí eu inventei de pegar uns sabugos de milho dizendo que eram dois bonecos esses dois sabugos. Botava boneco pro pessoal de casa. Pegava dois lençoizinhos e dois sabugos dizendo que eram os bonecos. E desses sabugos passei para dois cacetes. Fazia só uma cara. Só assim (…) e dizia que eram os bonecos.

E fui fazendo e perguntando: como é que faz aqui? Mamãe dizia que era cortando com a faca. E eu achava bonito esse negócio de cortar com a faca. E daí a pouco eu tava fazendo uns maiores. Pegava um bocado de pau. Botava tudim assim, fazendo fileira, como a gente bota os pauzim assim, um detrás do outro. Era a maneira de criança, de como que eu entendia. Era talo de coqueiro, era umburana, era pau d’arco. Aí um dia eu fIz um bonecão grande. Mas ainda não botava boneco.

Fui indo, fui indo… E a mamãe fez uns bonecos também. Naquele tempo, era uma pobreza, sem forma. No fim das contas, a mamãe fez uns bonecos até da ceroula de meu pai. Com coisa remendada, com molambo. Eu tinha 15/16 anos. O boneco era de madeira, mas os olhos era de papel pregado com grude. Tinha uns capuchinhos de milho pregado na cabeça. E eu fui botar boneco pela primeira vez. Meu pai levou o boneco dentro do saco de açúcar. Mas não era desses sacos de plástico, não. Era daqueles sacos de pano que tinha uma catinga de cera de arapuá. Meu pai levou porque eu fiquei com vergonha das meninas.

Assim botei o “Cassimiro Coco”. Aí caiu moeda. Disseram que botava boneco bem. No outro dia, papai foi comprar feijão, arroz e parece que comprou carne. E eu alegre, animado. Mas eu queria mostrar os bonecos era antes de tirar o dinheiro. Eu queria saber de mostrar os bonecos, aquele interesse todo! E eu trabalhando, trabalhando.

Passou, passou, passou… Eu fui chamado pelo Padre André, através de meu avô para fazer apresentação. Aí “virou Ibope”. Talvez tivesse na faixa de 18 anos. Aí lá vai… fui chamado pra muitos cantos, Muribeca, Jenipapeiro. “ Virou Ibope”. E todo mundo procurava. Aquela “ procurança” dos bonecos! Depois resolvi parar. Mas eu nunca queimei, nunca! Eu fazia era dar. Nunca queimei e nunca quebrei.

E o povo perguntando: cadê os bonecos? Passou-se e eu botei de novo. Botei boneco outra vez. E continuei de novo botando boneco. E quando foi um dia, eu disse: eu vou lá no Raimundo Bonequeiro, daqui de Trairi mesmo. Ele tinha uma pantera. E perguntei a ele: como é que essa pantera abre os olhos e fecha? Ele disse: eu lhe entrego a pantera. Mas eu não ensino. Não me disse nada, de jeito nenhum. Aceitei. Mas acredite, eu fiz a pantera do jeito da pantera dele, sem ele me ensinar! Descobri.

Por isso que eu digo, que a mente da gente é a professora e a gente é o aluno da mente. Porque é tudo coligado um com o outro.

Parti pro boneco grande! Aí menino, deu dor de cabeça. Mamãe preocupada: “o que é que tu faz?” Respondia: é um boneco que eu estou estudando. Ficava eu com a minha cabeça: como é que eu faço esse boneco? Como é que eu vou descobrir esse boneco? Porque ele tem que andar mais eu, atracado nele; tem que ter mola. E eu estudando. Eu vou pegar a perna dele e vou cavar lá pra dentro, serro um pedacinho e, quando acabar, coloco uma mola lá dentro e dentro da mola, para segurar, eu botei um negócio calçando para não escapulir. E agora tem os ombros… Um borracha daqui pra cá. E liguei dentro dos intestinos dele todos os fios: o fio dos olhos, dos dois olhos, e tem o fio que é para abrir a boca. É tudo ligado. Esse boneco é o “Onofre Americano”. E a pantera também, só bole com os olhos.

Ser um mestre é o cara abarcar um trabalho muito bem, botando os bonecos, porque eu sou profissional de fazer os bonecos. Eu boto bem os calungas. Eu boto bem, mas sou profissional de fazer boneco. Até agora, eu nunca pensei em fazer um boneco que eu não acertasse. É que eu estudo, eu boto um arrodeio e porque, quanto mais a gente trabalha, mais dentro da criatividade, dentro da habilidade do subconsciente – porque a cabeça da gente é como um computador, só que é um computador natural, não é artificial – mais vai descobrindo, mais vai funcionando, mais vai se atualizando no trabalho. Não só em fazer boneco. É em fazer boneco, é em todo trabalho: tem que estudar.

Só que a pessoa pra ser Mestre também precisa de ter uma delicadeza. Precisa de usar uma delicadeza, ser popular, e isto é muito bom demais. E o Marquinhos, filho do Gilberto Calungueiro me disse: “Mestre eu sou sincero, o Senhor é muito bom, porque o Papai só sabe botar na empanada. Ele não sabe fazer o boneco”. Mas Mestre Gilberto bota boneco melhor do que eu, mas ele não sabe fazer. Tem gente que faz um boneco, mas não sabe botar. E tem deles que sabe botar o boneco mas não sabe fazer. Eu sei fazer as duas coisas. E eu sou um escultor.

Quando eu fui escolhido como Mestre da Cultura, dos Tesouros Vivos, do primeiro mundo, popular do Nordeste – com o João Redondo, Cassimiro Coco e Benedito Trovão – eu fiquei muito alegre e muito feliz. Depois que eu fui reconhecido como Mestre, “virou Ibope” do município do Trairi. Fiquei mais conhecido. Muita admiração de eu ter passado. Todo mundo muito feliz. Muita gente procurando para fazer trabalhos: professora de mestrado, colégio para falar sobre a consciência negra e tinha que ser o Cassimiro Coco.


Dos bonecos que eu fiz, o que eu gosto mais, é do Onofre Americano. Já fiz muitos outros: Big Trovão , que é o general; tem o Extraterrestre, o Ludugero, a Pantera. Mas o Onofre Americano é o que eu mais gosto. Porque ele é o principal dos bonecos. Ele é mais alto do que todos os bonecos. Eu sempre começo com a Pantera e termino com ele. Segundo, é o extraterrestre. Eu gosto muito do extraterrestre, também. Porque é uma história impressionante, coisas além do universo.
Quando eu faço apresentação para crianças, o que eles gostam mais é do extraterreste. Essa história que eu conto do extraterrestre e que eu digo que ele é de outra galáxia do universo. Eu falo que a nave dele para poder vim a Terra é como que seja uma bala de canhão. Dá muitas voltas no universo. Só falta topar dentro do buraco negro, que já li essa história. E a primeira vez que ele pousou, o extraterrestre, foi nos Estados Unidos, uma noite num milharal. O primeiro ser que ele teve contato, quando abaixou a nave dele, foi com Elliot.


As histórias que eu conto eu tiro das pessoas que eu conheço, eu tiro dos outros mestres calungueiros também. Tem histórias que eu escuto resumida e vou interando com outras que eu invento de mim mesmo. E a arte vai continuar. Não deixo de botar boneco, não! Enquanto eu tiver vivo eu tenho um prazer de botar boneco. Eu acho bom. Quando eu estou trabalhando, eu acho maravilhoso, me dá aquele prazer. E eu vou ensinar ao Henrique, que já tá trabalhando comigo. E vou ensinar a outras pessoas mais. Eu tenho um prazer de ensinar.

Eu sou um profissional de fazer o boneco. Nesse trabalho que eu tenho, quando imagino, corre lágrimas dos meus olhos. Imaginar é uma alegria que é grande demais! Eu descubro, dentro da criatividade, um trabalho. Porque eu sou um profissional e eu sou um artista.