logo.png

Mestre

Deca Pinheiro

José Pinheiro de Morais

Mestre Penitente

Publicação no Diário Oficial do Estado

23 de outubro de 2015

Cidade/Residência

Assaré (Sítio Cacimba do Mel). Região do Cariri.

Nascimento

02 de maio de 1935.

Relato de Viagem

Genezaré, um dos distrito de Assaré, é um meio entre Assaré e Potengi. Mas não é passagem. De qualquer um dos municípios são cerca de 25 quilômetros de estrada de terra. Foi preciso duas viagens, a partir de Juazeiro do Norte, para encontrar o Mestre Deca Pinheiro que mora no Sitio Cacimba do Mel e vive na labuta seja como pequeno agricultor e pecuarista, seja na lida com as penitências para lembrar as dores de Nosso Senhor Jesus Cristo a caminho do Calvário. Encontramos o mestre cuidando de uma vaca parida, tirando uma casca de angico para fazer uma beberagem e não deixar o bicho morrer. Para nos atender e fazer a reza com esmero foi limpar a cruz, amolar o cacho da disciplina e vestir solenemente a opa da Irmandade de Nossa Senhora. À noite, o Mestre convocou os outros membros do grupo para cantar benditos em um cruzeiro fincado na estrada sob a luz da lua cheia.

(Cantando)

Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.

“Só entra na vida de penitente que tem coração.”

Meu nome é José Pinheiro de Morais, conhecido como Deca Pinheiro. Sou um penitente e já está com 64 anos que estou dentro da irmandade, cumprindo a missão que meu pai deixou pra mim e Deus consentiu. Venho nessa batalha forte, sofrendo, porque o cabra que anda à noite que nem nós anda, se cortando, derramando nosso sangue e tudo, é um sofrimento. Mas, graças a Deus, confiando em Deus, essa missão eu tenho de cumprir até quando eu morrer.


Eu entrei na irmandade com 12 anos. Meu pai não sabia. Chegou o tempo dele se prostrar e ele já tava consciente que ia deixar essa missão, que ela ia acabar porque não tinha ninguém prá ficar no lugar dele, ninguém que tomasse de conta. Eu tinha aquela vocação, de ajudar a cantar e andar mais os penitentes. Fui tomando gosto até quando resolvi. Foi o tempo que já conheci que meu pai não ia mais existir muito. Aí eu entrei no grupo, fomos tirar terço, andar mais eles, fui pedir esmola. Foi na época que meu pai soube que eu era penitente porque eu cheguei já o dia amanhecido. E ele perguntou: você tava aonde até uma hora dessa. Eu respondi: Pai eu andava mais Mané Carlo, fomos tirar umas esmolas. Voce anda com o grupo de penitentes? Ando pai, já tô colocado nele. Aí ele disse: pois pode seguir meu filho a minha missão. Meu pai faleceu, eu tomei de conta da missão dele.Aí dali por diante Deus deu o consentimento, parece que foi Deus que me chamou de coração, que eu também recebi de coração. Até hoje, graças a Deus estou me dando bem e venho cumprindo certo até o dia que Deus me tirar.

Já trabalhei com muitos grupos de penitentes… Lá no Arrojado. De lá, fui obrigado a vim prá aqui, em 58, porque o tempo tava feio por lá. Meu tio comprou um terreno aqui em Genezaré e me chamou pra abrir uma roça. Nós viemos, abrimos a roça, aí os outros foram se embora e eu fiquei – eu e um irmão meu.

Aqui tinha uns penitentes. Mas eles tinha cerimônia de dizer que era penitente. Nesse tempo ninguém podia dizer mesmo não A irmandade é tão fina que é até pecado quem souber dizer uns pro’s outros! Então…tinha esses penitentes aqui e eles ficaram sem Decurião devido ao falecimento dele. Esse grupo era o da Cacimba do Mel.
Eu trabalhei com outro grupo aqui em baixo, com o Cinca Zeca que era meu tio, trabalhei mais ele, passei mais ele bem uns quatro a cinco anos e ele foi se embora para Salvador e aí nós também ficamos sem Decurião…

Mas nós tirava terço. Os penitentes sempre se juntavam, tiravam os terços, fazíamos nossa obrigação. Aí foi o tempo que surgiu um camarada, um dos penitentes mesmo, que era o mais velho da nossa turma. Ele conseguiu ajuntar a turma da Antonina, que era seis, e nós quatro daqui. Ele juntou tudo e nós fizemos o grupo e foi quando nós trabalhamos uns quatro a cinco anos e ele foi embora para o Arrojado. Lá foi falecido.. aí ficamos sem grupo de novo. Ficamos aguentando, aguentando, aguentando
Os da Cacimba do Mel ficavam pra lá e eu pra cá. Nós era apartado. É tanto que até o cantar nosso é diferente do cantar deles. Meu sistema de cantar é um, e o sistema deles cantar é outro. Não dava certo. Quando eles estão cantando o bendito eu mesmo sou obrigado a parar porque não sei… é o mesmo bendito, mas o solfejo, é diferente do meu. Mesmo assim, pelejei. Aí morreu os dois mais velhos : o pai de Joaquim de Camilo – o Camilio Velho – e depois o Quinco Duarte, o Decurião e eu fiquei mais eles. Passei pro grupo deles, que eles estavam sem Decurião e eu também. Porque depois que os mais velhos faleceram ficou tudo parado… Ai nós combinamos.. eu disse: lá embaixo eu sou só, vocês aqui são sete. Vamos controlar e fazer um grupozinho só?!

Hoje, eu sou o Decurião do grupo de penitentes da Irmandade de Nossa Senhora, da Cacimba do Mel, Assaré.

O trabalho de um penitente é ajeitar o grupo, escolher um cruzeiro, em algum canto. A gente vai, tira o terço, oferece às almas aí a gente vem prá casa. E nós tem devoção de tirar esmola para apurar dinheiro para fazer rezado de missa prás almas. As almas …a gente precisa rezar prá elas Ás vezes, uma pessoa faz uma promessa.. ela vai falecido e a promessa não vai feita. Ela volta, escolhe uma pessoa (do grupo) prá pedir aquela pessoa para rezar aquele terço daquela promessa que ficou devendo, né?!E Assim a gente vai e paga aquela promessa que a pessoa fez… Porque às vezes a alma está penando, se você morre e fica devendo uma promessa, não paga, enquanto você não pagar ela você está devendo. Ali já tem sofrimento também. Aí a gente vai e paga.

A devoção maior que nós faz é quando entra a quaresma que é quarenta dias. Rezar os terço da quaresma e tirar esmola. Recebe aquelas esmolas, tira para o jejum da gente, se sobrar nós damos a quem não tem. O jejum nós repartimos. E assim nós vem tirando o terço, nós temos obrigação de tirar terço…


O Decurião, o chefe do grupo, investiga o sujeito todim quando ele vai receber o cargo de penitente, o nome de penitente,. Ele recebe a Ópa , recebe aquela calça branca, recebe o cacho.

O Decurião leva o novato no meio da turma pra ele tirar o terço. Ele deixa nós tudo lá junto. Se o Decurião chegar lá depois de terminado o terço, e não tiver trabalho feito, que é o flagelo, a disciplina – que os outros que já tem costume faz – , ele diz : se abaixa aí, se enrola aí que eu vou fazer. Dá umas quatro ou cinco lapada boas. Aí o sangue desce logo. Aí vai e perde o medo.. Aí pronto. Dali por diante o cabra já perdeu o medo. Porque o medo que os novato tem é que eles pensam que dói, vai inflamar aquelas feridas, criar ferida. Não!
O cacho – que é o nome do que corta o cabra – é bento pelos padres. E o cabra se corta é do tanto que quiser mas quando é com dois dias está saradinho. No outro dia, tem somente aquelas marquinhas, Aqueles golpinhos. Aí com três dias está largando a casca. Aí pronto: já tá sarada.

Essa prática que a gente faz é para lembrar quando andavam judiando com Jesus Cristo. Chicoteando. Eles davam tantas lapadas, que nem as conta no bendito, daí ficou o cacho. Por isso todo penitente tem de ter esse cacho e se chicotear como fizeram com Jesus Cristo.

A vida de penitente é uma vida sofrida. Só entra na vida de penitente que tem coração. Se for de coração! Se não for, pode desistir. Porque é pesada. Por que andar e ficar três dias tirando esmola e se cortando nesses três dias às 12 horas da noite! É pesado.
Sai cada qual com seu saco de legumes nas costas e quando dá 12 horas da noite – hora que o galo canta – o cabra bota tudo no chão. Aí quem tiver cacho vai se cortar até o galo cantar três vezes. Depois que o galo cantar, segue a viagem. E é assim.
E o cabra se corta hoje, e amanhã se corta de novo em cima dos mesmos golpes e ainda tem a terceira noite. Que é três noites ! Ele ainda vai pegar os golpes inflamados e vai bater em cima de novo. E é assim.

E é por isso que eu digo que a vida de penitente é muito difícil.
Se eles dizem: Eu não vou me cortar porque não vou derramar meu sangue, porque dói, vai criar ferida. Eu digo: pois é, vocês é quem sabe. Eu tô fazendo a minha parte.
Porque se eles dizem que aquilo já se passou, aquilo foi no tempo de Jesus Cristo! Eu digo que o que Jesus Cristo fez e deixou não se acaba não! Se acaba a má vontade da gente. Aí se acaba. Mas o que Ele fez e deixou feito na terra não se acaba não!

A gente entra para a Irmandade assim, de livre vontade. O Decurião não vai atrás de ninguém. Quem tem o bom coração entra por sua livre vontade, de gosto. Entra e vai acompanhando, se dirigindo pelo grupo. Vai vendo os mais velhos e pegando a prática deles, até ficar que nem eles. Aí o Decurião sabe que a gente pode conseguir aquele caminho. E diz : olha você não pode falar pra ninguém que é penitente e quando for para uma obrigação, não se avistar, não deve passar em frente de casa e nem se apresentar a gente que vem na estrada. Se vocês ouvirem um conversê com 15 ou vinte braças na frente, vocês entrem pros mato, se esconda, deixe aquele povo passar, depois siga a viagem de vocês. Porque não pode e é assim.


Quando eu recebi o título do mestre eu fiquei muito contente porque nunca esperancei de chegar onde cheguei. Hoje considero como meu Mestre da Cultura Patativa do Assaré. Agora, eu represento dois grupos: o da irmandade e o da cultura. Eu tenho de cumprir meus deveres com os dois grupos. Eu tenho compromisso com os dois grupos.

Os penitentes não vão se acabar de todo. Se acaba uns e outros não. No meu caso, só se acaba quando eu chegar a morrer. Mas, se meu filho tiver o sentimento que nem eu tinha pelo meu pai, se ele tiver o gosto de cumprir a minha missão, pega meu cargo, né?! Mas até agora ainda não sei se isso vai acontecer. E eu já tenho 64 anos de irmandade e nunca chegou o plano de um dia desvanecer. Nós temos o interesse e a vontade ir pra frente e não pra trás. Pra o grupo nunca se acabar.