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Mestre

Espedito Seleiro

Espedito Veloso de Carvalho

Mestre em Artesanato em Couro

Publicação no Diário Oficial do Estado

22 de outubro de 2008.

Cidade/Residência

Nova Olinda - Região do Cariri

Nascimento

29 de outubro de 1939.

Relato de Viagem

Nova Olinda está no mapa turístico e cultural do Ceará por duas razões: a Fundação Casa Grande e a arte de Espedito Seleiro. O Mestre, sempre bem humorado, nos recebeu como costuma fazer com os clientes, pesquisadores, estudantes e curiosos que vem de  todas as partes do mundo, com um largo sorriso.

Ele nos contou de forma descontraída e ao mesmo tempo enérgica a sua trajetória. Chegamos no começo da tarde e saímos já de noite. O tempo foi longo, mas passou rapidinho, como nos bons momentos. 

Mestre Espedito estava imbuído de uma nova tarefa além de gerenciar a oficina. Depois de ter montado a loja, de fundar o Museu do Couro que conta sua história, a empreitada era fazer a pousada e o calçadão que, unificando todos equipamentos ali ordenados, criaria um corredor do artesanato em couro.

E é preciso dizer que, mesmo ainda sem o calçadão, não há como ficar imune à sua loja e oficina – dispostas uma em frente da outra. Ambas, nos enchem os olhos de cores, formas, texturas. É mais difícil ainda não sucumbir ao desejo de obter um dos artigos fabricados pelo Mestre, tal a beleza do couro trabalhado por ele.

Mas, sem dúvida, é perceptível que o lugar mais caro ao Mestre Espedito é sua oficina.  Ali, além de local de labuta, onde na maioria das vezes ele chega de madrugada, é também local de ócio, puro deleite. Num longo banco de madeira, posicionado na frente do prédio, ele, um exímio narrador, conta suas histórias misturadas em lembranças e projetos futuros.

“Prá começar eu não considero esse trabalho meu, um trabalho. Eu considero um esporte que eu tenho. Eu posso está com a maior raiva, quando eu chego aqui na minha mesinha, acabou todas as raivas.”

Realmente, eu tenho dois nomes. Eu me batizei por Espedito Veloso de Carvalho. Mas o pessoal só me conhece por Espedito Seleiro. Nasci no centro dos Inhamuns, um sertãozão acolá, correndo atrás de boi brabo e cavalo brabo. Me criei dentro do sertão, na vida de cigano, na vida de tropeiro, na vida daquele pessoal do sertão inteiro. Eu cheguei em Nova Olinda em 1949 e meu pai trabalhava numa fazenda aqui pertinho. Como meu avô, meu pai era seleiro e com idade de oito anos já comecei a fazer sela e achei bom, e até hoje eu tô nessa vida. Só que eu não faço só sela. Teve uma época que eu fazia muita sela, vendia bem. Eu fazia a roupa do vaqueiro completa e vendia. Fazia dos pés à cabeça: o sapato, a perneira, o guarda-peito, a luva, o gibão e o chapéu. Cobria o vaqueiro de tudo quanto ele precisasse para chamar ele de vaqueiro.  Mas aí chegou uma época que não estava vendendo. Acabou o vaqueiro, acabou o cangaceiro, acabou o tropeiro, acabou o cigano. Era esse pessoal que gostava mais de usar roupa de couro. Por que? Porque era o pessoal que vivia mais no sítio, nas fazendas, andava mais na mata. Tinha de usar porque só aguentava o espinho se fosse roupa de couro mesmo. Então, como todo mundo usava, lá onde a gente vivia, tinha muita saída. Só que com o passar do tempo acabou esse pessoal. 

Aí foi onde eu mudei. Não mudei a profissão, fiquei trabalhando com couro mesmo. Hoje ainda faço a sela, o gibão, o sapato… essa coisa toda. Mas a força maior aqui que a gente faz é sandália, bolsa, cinto. São essas peças que a gente vende bem. Agora a gente está fazendo umas cadeiras e o pessoal tá gostando e a gente não tá dando nem conta das encomendas.  Eu resolvi mudar não foi prá ficar bonito, nem prá ficar famoso, nem conhecido. Como eu tava precisando de dinheiro eu resolvi mudar. 

Um dia eu fui para uma feira que eu acostumado a vender bem. Fiquei até uma três ou quatro horas da tarde, não vendi nem prá almoçar. Eu cheguei em casa de volta e disse para minha esposa:  a partir de hoje eu não vou mais fazer aqueles trabalhos que eu fazia. Foi aí que eu resolvi fazer peças coloridas. Aí me veio a pergunta: como eu vou arrumar a matéria prima para fazer o colorido? Aí foi onde complicou.. 

Cadê a tinta, cadê as coisas pra fazer colorido? Não tinha. Mas como eu já tinha a prática, do meu pai, do meu avô… aí eu fui fazer o preto. 

Peguei um monte de pedaço de ferro, joguei dentro de um pote, peguei uma meia lata d’água misturei com o ferro, o ferro já bem enferrujado. Peguei um monte de rapadura preta, daquela do engenho, daquela salobra que era baratinha na época, pilei e botei dentro do pote e deixei passar oito dias. A mistura pronta, eu passava no couro e ficava bem pretinho. Só que a peça ficava dura que só a gota. Aí eu ia no açude jogava a tarrafa, pegava peixe, torrava e tirava a gordura e passava em cima do couro. Depois pegava o couro enrolava, enrolava. Colocava ele em cima de uma pedra e dava uma surra bem grande, como se dá em cabra ruim. Quando eu parava de surrar o couro, que eu desenrolava tava bem maciinho. 

Aí, cadê o branco? O branco eu corri na mata e tirei uma carga de lenha de catingueira. Fiz uma fogueira e aproveitei a cinza todinha. Comprei pedra hume e misturei com a cinza num pote velho de barro e deixei passar três dias. Aquela gororoba assim. Aí, dentro dos três dias que eu tirei o couro de dentro da cinza com a pedra hume, o bicho tava todo manchado de branco, aquelas raja branca e outras não. Aí eu comecei a lavar na água bem limpinha. Puxava, puxava… do jeito que você faz alfinim – o alfinim você pega a cana, com um mel bem grosso e puxa aqui e fica só puxando. Eu puxava que as unhas ficavam azul, mas o couro ficava bem branquinho. 

E cadê o vermelho? O vermelho eu corri atrás do urucum. Quebrei a semente com bage com tudo, fiz aquela gororoba e quando eu passei no couro, junto com o óleo ficou bem vermelhinho.  Aí eu disse: aqui vai dando certo, né?! 

Aí teve o marron. Que ainda hoje eu gosto de trabalhar com o marron. O marron, eu corri atrás na mata e tirei uma carga de casca de angico. Cheguei em casa botei pra secar. Peguei um macete e bati numa pedra até ficar bem mastigadinho, só a macinha e fiz outra gororoba, desmanchei tudo. Ficou igual a caldo de feijão. Botei o couro, o couro natural que eu já tinha curtido. Com três dias que eu tirei o couro tava bem marronzinho. 

Eu disse: agora pronto. Acabou o problema. Aí larguei o pau a fazer peça colorida. Agora hoje é uma água. Essa experiência eu ia passando para os curtumes. Dizia para o pessoal: rapaz você procura fazer um couro, procure uma tinta bonita, faça um couro mais macio, molinho… faça azul, faça branco, preto, amarelo, que isso vai ter saída. E eles foram pegando as ideias e hoje, onde você chega, tem o couro pra comprar. Agora eu ainda hoje gosto de comprar o couro natural pra eu fazer a cor que eu quero. Nem que eu compre a tinta. Eu misturo uma tinta com outra, uma cor com outra cor… As vezes fica tão feio que ninguém sabe que cor é… Mas eu quero saber se compram…

Eu uso couro de boi, couro de bode, couro de carneiro, de avestruz. Foi couro eu transformo ele numa peça. Pode ser couro de qual bicho que seja. Qualquer material. Mas a gente corta muito hoje é o couro do boi e do bode. Porque existe isso também: o couro do boi dá várias espécies de material. Tem a raspa, tem a pelica, sola e vaqueta e camurça. De um couro só você faz tudo isso. 

Eu não considero esse trabalho meu, um trabalho. Eu considero um esporte que eu tenho. Eu posso está com a maior raiva, quando eu chego aqui na minha mesinha acabou todas as raivas. Eu vou mudando, mudando o sentido. Pego um pedaço de couro, vou desenhando uma peça, desenhando outra. E assim a gente vai vivendo tranquilo e sossegado. 

Eu tenho o nome de mestre porque eu sou mestre mesmo. Porque eu pego uma cobra lá dentro da roça, um cavalo, ou um burro, ou um boi, ou um bode, seja lá o que for, trago pra casa, pra abater, curtir o couro e fazer qualquer uma peça que tem ali na loja. E eu faço isso. Ainda hoje eu faço. Eu mudo a cor dele, eu faço o curtume – que é muito difícil – e faço tudo. Do jeito que eu quero eu faço. Acho que mestre é isso. Começar tudo do chão, vamos dizer, e ir até o derradeiro grau.

Eu acho que a ideia desse projeto de Mestre da Cultura, de apoiar os Mestres, foi uma boa. O melhor é que, cada um, além de eu levar o nome de Mestre, que ajuda muito na profissão, ainda recebe um dinheirinho para ir quebrando o galho. Eu acho que foi uma das coisas melhores que já fizeram no Ceará. 

Uma das  coisas que eu mais me preocupei foi em repassar a tradição para as pessoas. Primeiro eu gostei de apoiar a família. Porque é uma tradição de família. Hoje eu tenho um monte de gente que trabalha comigo. Se vier uma empleita bem grande pra eu fazer eu junto todo mundo. Se eu não tivesse ensinado eu ficava sozinho. E sozinho você não é nada. Por isso é que eu não tenho medo de enfrentar qualquer trabalho aqui, porque tem o meu grupo que eu ensinei. Aqui tem uma associação: oficina-escola Espedito Seleiro. Sempre tem gente aprendendo. Só não boto 40, 50 alunos para eu ensinar porque eu não tenho condições. Mas dois, três, quatro, até cinco, eu mantenho direto. Faço com o maior prazer. 

Deixa eu contar uma curiosidade. Eu não gostava de trabalhar prá mulher. Quando eu comecei a fazer as peças, eu fazia umas chinelinhas para minhas irmãs, para as namoradas. Fazia bem bonitinho. Eu fazia hoje e amanhã elas queriam outro modelo. Compravam uma roupa e queriam outro modelo prá combinar. Eu pensei: vou trabalhar para os homens que eu faço um sapato ele passa dez anos remendando, calcando e pintando…. Às vezes eu digo que eu fui castigado porque hoje eu só trabalho mais para as mulheres. Mas é um castigo bom porque as mulheres compram bem. Mulher compra bolsa, compra cinto, compra sandália, compra chapéu…

Mas, se fosse pra eu escolher um trabalho, só o que eu queria mesmo, era fazer sela. Porque quando eu pego um pedaço de couro e um pedaço de madeira a sela, prá mim tá é feita. Sou muito prático, muito acostumado a fazer. Para mim já tá é feito, falta só receber o dinheiro. Não tem nenhuma dificuldade.