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Mestre

Gil Chagas / Gil D’Aurora

Francisco Furtado Sobrinho

Mestre Escultor e Luthier

Publicação no Diário Oficial do Estado

26 de fevereiro de 2019

Cidade/Residência

Aurora (Região do Cariri)

Nascimento

18 de março de 1958

Relato de Viagem

Uma oficina com muitas ferramentas, muita invenções iniciadas e outras inacabadas. Muitos instrumentos prontos e sendo feitos dando a impressão que o Mestre trabalha em vários projetos ao mesmo tempo. A conversa desenrolou-se entre lembranças das dificuldades, reverência aos seus mestres, conquistas e planos para o futuro. Principalmente, na formação de novas gerações para que os sons específicos da rabeca continuem propagando –se no Nordeste e no mundo.

(Cantando)

Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão /  Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.

“Eu não desisti de meus sonhos. Hoje eu sou mestre. Hoje eu sou artista”

Eu me chamo Francisco Gildamir de Sousa Chagas. Filho natural de Juazeiro do Norte, de José de Sousa Chagas e Tereza Maria de Sousa Chagas. Vim morar em Aurora aos três meses de vida. Então em Juazeiro do Norte, eu só nasci. Desde criança comecei a observar meus pais trabalhando. Meu pai, meu avô eram marceneiros. Então não tinha como eu fugir da realidade e para mim não tinha uma opção a não ser a marcenaria. A primeira profissão que veio em mim foi a marcenaria. Tive muita dificuldade para chegar aonde cheguei? Tive. Furei muita aula. Aos sete anos de idade, levei uma pisa muito grande da minha mãe porque estava furando aula para me esconder dentro das matas para fazer peças exóticas. E então atrasei meus estudos pelas esculturas e peças exóticas. Porque meu pai e minha mãe queriam que eu partisse para a profissão que era do meu pai e do meu avô, mas eu queira artes plásticas.

Até que foi descoberto que eu estava fazendo minhas obras escondido, por trás da minha casa e minha mãe me levou para a escola. Eu sem querer ir; e quando chegou lá contou à professora o que estava acontecendo e a professora falou que deixasse eu seguir do jeito que eu queria, que escultor era profissão também. E então a minha mãe me liberou.

Isso mais ou menos nos anos 1965. Eu com idade de sete anos. Então, quando me liberaram, eu fiquei ajudando meu pai e em casa mesmo eu fazia minhas peças exóticas e fazia as minhas esculturas.

Eu sempre ia deixar a merenda do meu pai e voltava pelas laterais da igreja onde um Senhor, por nome de Nego Simplício, trabalhava com escultura. Então eu passava meia hora olhando ele trabalhar, porque eu queira aquela profissão pra mim.

Aos 12 anos de idade, eu já não precisava de meu pai para me dar alimentação e nem roupa. Porque eu já vendia as peças de artesanato e alguns utensílios em madeira: copeira, escorredor de prato, porta-cortina, porta-guardanapo. Eu vendia na feira e entregava o dinheiro para minha mãe. Minha mãe já ia na feira, fazer mercantil com aquele dinheiro e comprava as coisas para dentro de casa.

Ligeirinho,a profissão de marceneiro chegou em mim. Eu criança já trabalhava na marcenaria. Trabalhei muito tempo na marcenaria e trabalhei com muita atenção e confiança em mim, e isso, na época, deixava o pessoal satisfeito.

Então, em 1977, eu já fui convidado para esculpir o trono de Dom Vicente de Matos, que era o Bispo Diocesano da cidade do Crato. Eu era um jovem, bem novinho. Quando eu cheguei, os outros marceneiros, mais velhos ficaram tirando onda comigo. Naquele tempo, para a pessoa trabalhar de marceneiro – tinha de ser tipo um escultor, porque os móveis da época era o móvel colonial, era o móvel Luís XV. Já tinha uns marceneiros com 45 anos que trabalhava nessa movelaria, e eles diziam: “olha aí o passa fome que veio lá de Aurora”. Chamava de passa fome porque eu era bem magrinho, bem magrinho. Para encurtar a conversa, dentro de três meses eu esculpi o trono de Dom Vicente. Era só para eu esculpir o trono de Dom Vicente e vir embora. Fui aplaudido e ao invés de eu passar lá só três meses, passei um ano e um mês. Na cidade do Crato.

Eu queria seguir as artes plásticas. Eu não tinha esquecido do meu sonho. Trabalhava na marcenaria, trabalhava bem. Já tinha muitos móveis feitos por mim dentro do estado do Ceará e dentro de Aurora. Fui aplaudido na época que eu trabalhei de marceneiro. Mas o sonho meu era partir para as artes plásticas e eu sabia que “cobras” das artes plásticas estavam lá em Salvador.

Então quando foi em 1980, eu já era de maior. Porque naquela época o filho vivia por baixo do suspensório do pai até 21 anos. Em 1980, eu fui para Salvador. Mamãe não queria que eu fosse, meu pai também não queria. E eu fui sem eles quererem. Já era de maior, fui. Lá eu passei mais um ano e quatro meses. Quando eu voltei vim com a mala cheia.

O móvel foi ficando mais fácil para ser feito e o número de marceneiros foi ficando mais alto dentro da cidade de Aurora. A concorrência foi aumentando. E eu já tinha a profissão de escultor. Assim pensei: eu tenho de ir abandonando a marcenaria. E fiquei trabalhando com as esculturas, com as talhas e com as carrancas. Até o povo sequer me procurar como marceneiro.

Eu trabalhava fazendo oratório e chegou um senhor lá em casa, por nome Gilmar de Carvalho, junto com um amigo meu, por nome de Luís Domingos. E me perguntou se eu tinha oratório que eu pudesse emprestar um a ele. Eu disse que tinha três oratórios. Professor Gilmar contou que estava fazendo a história da Mártir Francisca e precisava de um oratório par colocá-la dentro. Quando Gilmar viu os oratórios ele disse: “Mestre, se você fosse fazer rabeca ou violino você ia fazer divinamente bem, porque você já está fazendo as volutas dos violinos nestes oratórios seus”. Mas eu não sabia nem o que era voluta. E eu perguntei: o que é voluta?

Gilmar me mostrou a voluta de um violino. Aí eu disse bem assim: Gilmar pois você me acredita que eu ainda não tentei fazer um violino ou uma rabeca porque eu tenho medo de botar o material a perder. Mas eu tenho vontade de fazer um violino para mim. Gilmar disse: “Eu sou Gilmar de Carvalho, professor da Universidade Federal e sou pesquisador da cultura do Estado do Ceará. Todos os anos acontece o encontro dos mestres rabequeiros. Aquele que faz a rabeca melhor, tira o primeiro lugar ele tem um cachê. Por que você não tentar fazer?” E isso era mês de dezembro e o encontro era mês de março do outro ano.

Resolvi fazer. Eu disse a ele: a partir de amanhã vou começar a fazer uma rabeca. E ele disse: “ faça uma e tire três fotos e mande para mim. Vou deixar o meu e-mail. Quando você começar, tira uma foto. Na metade da rabeca, outra, e no final você tira a terceira e me envia.” E assim fiz como ele tinha dito. Quando eu finalizei a rabeca, eu peguei o cavalete da rabeca, segurei ele aqui na mão e peguei um tubo de cola, e faço como quem está botando a cola nos pés do cavalete da rabeca. E essa foto eu enviei para Gilmar. Mandei as três. E eu fiquei naquela ansiedade, esperando que viesse o resultado que eu queria saber quantos pontos eu tinha feito. Uns quinze dias depois Gilmar manda a resposta: “mestre, o senhor fez 97 pontos”. Ora, eu não esperava fazer nem 50. Gilmar então falou: “ mas seus três pontos estão lá em Mauriti. Lá tem um grande mestre luthier por nome de Antonio Gomes. Você bota essa rabeca em um saco e vá lá ele vai lhe dizer onde está os três pontos”.

Eu fui lá em Mestre Totonho. Botei a rabeca no saco como Gilmar pediu que eu fizesse. Então Mestre Totonho disse: “Mestre Gil, os três pontos estão aqui… Não era para o senhor ter botado cola. Mas tá aqui, tudo o que você vai precisar para fazer rabeca e violino, nesse livro. Tome, leve!” Ele me deu um catálogo com todas as medidas de rabeca, de violino, de violoncelo, de contrabaixo. Aí vim com a mala cheia lá de Mauriti.

Assim, eu passei a fazer com gosto. Rabeca e violino. Hoje eu trabalho nas duas coisas – luthieria e escultura – porque é com essas duas que eu estou levando o feijão para a mesa. Os instrumentos musicais e as esculturas são quem bota o feijão na minha mesa. Hoje eu vivo disso. Conquistei o espaço como Mestre da Cultura através das rabecas que eu construo.

E eu me senti muito honrado em conquistar o título de Mestre da Cultura porque a minha cidade é muito pequena e eu me tornei um orgulho para minha cidade e para meus amigos aurorenses. Então eu sou muito grato por tudo isso. Devo isso a Deus, a marchetaria e a lutheria.

Eu tenho procurado repassar minha profissão para crianças e adolescentes, porque eu vejo crianças se acabando no mundo das drogas. Mas eu não tenho apoio para eu exercer o ofício da maneira que eu quero. Porque, infelizmente, aqui em Aurora para pessoa conseguir algo sem apoio é muito difícil e eu nunca tive apoio na cidade.

Hoje eu faço rabeca e outros instrumentos e faço mostrando a tutoria: o passo a passo, e coloco lá no meu canal. Quem quiser assistir é só escrever lá no Google: “Gil Chagas” que vai direto para o meu canal.

Hoje eu sou artista e sou mestre. Eu não desisti de meus sonhos. Às vezes a pessoa quer conquistar um espaço mas não luta por aquele espaço. Eu lutei. Conquistei. Hoje eu sou mestre. Hoje eu sou artista. Eu tenho um diploma como um artista. Sou diplomado. E as pessoas em Aurora sabem quem é Gil Chagas. Isso para mim foi uma honra. Foi uma honra também para os aurorenses. Com todas as dificuldades que eu passei mas eu conquistei… porque foi mérito meu, não tive apoio, meu apoio foi Deus. E então foi Ele quem me fez o Mestre da Cultura que hoje eu sou. A cidade de Aurora tem dois mestres da cultura: Mestre Antônio Pinto e Mestre Gil Chagas


Eu antes de morrer quero deixar pelo menos uns três rabequeiros aqui dentro de Aurora porque eu não quero que essa tradição se acabe. Hoje eu estou vivo, amanhã eu não sei. Seu Antônio é Mestre também, faz rabeca. É isso que eu quero. Mas para isso eu preciso de apoio. Eu preciso de um local adequado. Eu não quero preparar só três pessoas. Eu quero pelo menos preparar uma equipe de 15 a 20 pessoas para eu repassar; porque é um prazer que eu tenho: transmitir, repassar meu saber. Meu lema é repassar o que Deus me deu a outras pessoas.