Mestre
30 de maio de 2006.
Icapuí – Região do Litoral Leste
06 de outubro de 1942.
Mestre Gilberto nasceu para o que é. Nasceu para ser calungueiro. Foi o que sempre quis ser e é o que faz com maestria: domina a cena do teatro de bonecos. Aquele homem forte, rígido à primeira vista, nos contagiou com sua sensibilidade ao narrar sua história de vida. Foi ao lado de Baltazar, o boneco que ele confeccionou há 62 anos e que ganha vida pelas mãos do Mestre, que a conversa aconteceu.
Ao ar livre, na casa do filho Marquinhos, no alto de uma falésia, característica daquela região litorânea, Gilberto Calungueiro e Baltazar nos brindadram com o privilégio de conhecer suas aventuras, entre risadas e engasgo de choro. Era uma manhã de chuva com sol, um cenário de “casamento de raposa”, presenteado pela natureza que parecia conspirar a favor de quem lida com a imaginação.
Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.
“E a gente vai andando no mundo e quanto mais eu ando mais eu aprendo.”
Eu sou Mestre Gilberto Calungueiro, da cidade de Icapuí. Eu sou riograndense. Vim pra cá com um ano e seis meses e fui criado aqui. Fui injeitado, como carneiro, mas depois tive tanta sorte que contei com duas mães e dois pais. E foi aqui em Caiçara – antigamente era Caiçara – que eu vivia mais meus pais em um roçado. Eu andava pra lá e pra cá nos tutuns do meu pai.
Foi quando eu tinha oito anos de idade que chegou um bonequeiro aqui, um calungueiro chamado Antonio Flandeiro.Aí eu pedi um dinheiro a meu pai pra ir assistir esses bonecos. E papai disse: meu filho aquilo ali não tem futuro pra você não! Aquilo ali é um pessoal que anda no meio do mundo enganando o povo. Mas eu disse: mas pai eu queria ir, porque é bom a gente ver as coisas. Ele não deixou, e eu fugi de casa mais dois colegas e fomos assistir, fomos brechar os bonecos. Quando eu cheguei lá, botei um menino em cima do outro e eu me subi como se fosse uma escada. A casinha era pequena e era coberta de palha. Eu fui botando o pé, pra rasgar a palha pra brechar, o pé escapuliu e eu caí em cima do calungueiro Antonio Flandeiro.
Ele deu um grito, quase morre de um susto. Menino, valhe-me Nossa Senhora! disse o Calungueiro. Ele estava tirando os bonecos de dentro de um caixão. Era boneco preto, era boneco branco, era cão, era alma, era cobra. Era toda qualidade de bicho que ele tirava daquele caixão. E eu prestando atenção. Quando termina a brincadeira, ele vai e diz: você vai sair aqui, por essa janela. Ele não mostrava os bonecos a ninguém fora da brincadeira. Foi por isso que os meninos perguntaram ansiosos: me conta que visse lá, tu tava com ele! Conta tudo! Eu disse: só amanhã. Quando foi no outro dia, eu disse: negrada vocês querem ser calungueiro mais eu? Os dois! Eles perguntaram: como foi Gilberto? Eu só disse, vamos tirar uns paus. Aí eu sai cortando pião, que é uma madeira que desgraça as roupas de nódoas. E eu cortei o pau e fui pegar um carvão; e olhava pra os meninos e fazia a venta, fazia a boca fazia a orelha. Mas eu não tinha o pano pra fazer a luva. Aí, eu roubei uma calça de meu pai, uma perna da ciloura de meu pai.
E peguei o pau de pião, enrolei e botei a mão por dentro, e rodava assim e dava certo. Peguei duas luvas e fiz com os dois paus de pião os dois bonequinhos. E pedi a minha mãe um saco de açucar pra eu fazer uma empanada – que é o toldo de brincar por trás. E ela disse: meu filho isso não tem futuro não. Tornei a pedir: mamãe, deixa eu ir pra frente, deixa eu botar a minha empanadazinha, pros meninos achar graça. Deixa eu fazer o que o homem tava fazendo.
Aí, ela me deu o saco de açúcar e eu botei no cantinho da parede amarrado e disse aos meninos que ia ter boneco: negrada, meninada aqui do pé da serra do Icapuí e Caiçara, vai ter boneco hoje lá em casa! Aquele calunga que brinca atrás do pano. Eu vou brincar hoje. E a entrada é um palito de fósforo. Isso eu já tinha nove anos.
Nessa época, a gente comprava uma caixa de fósforo e repartia a caixa pros três vizinhos, – mas menino é coisa sabida. Não brinque com menino, que menino é sabido. Os pais dos meninos tiraravam umas abelhas nos matos e sobrava cêra. Aí, os meninos que não podiam dar o palito de fósforo novo pegavam o palito de fósforo riscado e botavam a cerinha. E eles só me entregando… No meio de vinte meninos eu tirava dois palitos de fósforo que prestavam. Eles me enrolavam… E por aí eu comecei.
Uma vez, um tio meu, Vicente, fez uma calunga pra levar para Canindé, pra pagar uma promessa. Botou lá na cerca, bem feitinho, a calunga. Aí eu roubei. Mostrei a mamãe e ela falou: Vicente vai te matar, é prá ele levar para Canindé. Eu respondi: mamãe deixe. Ele faz outro. Deixe eu ficar com esse bonequinho, olha como ele é bonitinho. E eu ajeitei o bonequinho e cortei outra ciloura de meu pai.
Quando foi de noite, papai disse que ia à missa. Foi pegar a ciloura e aí….cadê? Duas cilouras sem perna.
Meu pai grita:
-Cília! – era Cecília o nome da minha mãe que me criou – venha cá!
O que foi que aconteceu com a minha ciloura? Olha aqui: faltando as pernas.
-Caboquinho – era assim que meu pai me chamava – me diga o que foi isso nessa ciloura aqui.
-Eu disse: meu pai eu não vou mentir não. Eu cortei pra botar no calunga.
Meu pai ficou bravo:
-eu não disse Cília, que esse calunga não dava certo…
E fez aquela zoada.
Mamãe, que nunca teve filhos e eu era bem quisto por ela e ela por mim, passou a mão por cima:
– Rodolfo deixe o menino. O nenguim quem criou foi eu.
Aí ele ficou calmo, mas ainda meu deu dois bolos de palmatória por causa disso.
Agora, que tem calunga de verdade é dois palitos de fósforo, a entrada. Dois palitos. Aí eu inventava aquelas sem-vergonheza, inventava uma historinha. Os meninos vieram, foram avisar aos outros. E eu já tirei quase meia caixa de fósforos. Papai, um dia, foi lá no lugar onde eu botava os fósforos, e viu um bocado e perguntou: meu filho de onde vieram esse fósforos? Eu respondi: é que eu tô ganhando, meu pai.
E meu disse: É, parece que a coisa vai pra frente! Já ia prá 12 anos. Eu já tinha o Baltazar.
Eu fiz o Baltazar com dez anos, ele está com 62 anos. De vez em quando, eu dou um cheirinho nele. Ele me deu muito de comer… Quando eu fiz ele, eu disse: agora é a dinheiro. Vou brincar à dinheiro. E veio um cabra rico de Aracati, chamado Chico e disse: Gilberto eu te dou a tua empanada. Ele me deu dez sacos de açucar. Aí eu pensei: eu vou fazer dois calções pra mim, vou tingir, e com o resto vou fazer a minha empanadinha. E fiz. Nessa época já brincava a tostão, dinheirinho. E mamãe dizia: meu filho, parece que a coisa vai pra frente!
Com uns 15 anos eu corria toda a redondeza: saia com Baltazar pra Quiterias, Tremembé, Melancias. Um tempo, eu fui à Canindé. Eu fui indo no meio do mundo com Baltazar nas costas. O Baltazar é de umburana. E foi o único Calunga que não morreu. Esse é o artista dos bonecos. Esse tem tanta história pra contar… que só vendo. Quando eu chegava do mar ia lá reparar na mala se ele tava lá, se os os meninos tinhiam mexido. Eu sempre disse aos meus filhos: não é pra bulir aqui. E lá se vem, lá se vem, lá se vem….
Pra ser mestre, não é só chegar e dizer que é mestre não! Precisa ser bom naquilo que faz. Isso aqui também tem ciência, tem que agradar o povo. Isso aqui não é só botar na mão e dizer: boa noite pessoal e acabou-se, não. Aqui tem de ter a história boa pro povo achar graça. Isso aqui é uma arte popular, é pra todo mundo achar graça.
A minha apresentação, se eu for num lugar num dia, é uma, se eu for no outro dia, não é a mesma. Eu conto outra história. Eu tenho a história do padre, do pastor, pescador, história dos dois doutores que vão ensinar, dos dois gêmeos, história da cobra, da alma. Eu tenho história de todo tipo e crio histórias de mim mesmo. Tem muita história, advinhação.
Quando eu recebi esse título de mestre da cultura… Isso pra mim foi uma glória, eu quase… meu Deus… Eu me abracei com meu menino, peguei a chorar! Porque… Eu pensei: pra você ver o que meu pai me dizia e hoje eu cheguei a ser Mestre da Cultura Popular. Em todo canto que eu chego gostam da minha conversa, das minhas histórias. Eu conto história mentirosa, eu conto história do mar, conto história de todo jeito. Eu tenho uma embolada de coco que eu canto, dos bonecos. E pro aí eu saio, tirando as brincadeiras, todo mundo gosta das minhas brincadeiras. Agora esse neguinho aqui, o Baltazar, não sai da mão. E a gente vai andando no mundo e quanto mais eu ando mais eu aprendo.
Sou muito satisfeito em ser Mestre da Cultura Popular e ter meu filho que já está quase imitando. Marquinhos, meu filho calungueiro, filho de Gilberto Calungueiro. Ele já vai a Brasilia mais eu, Rio de Janeiro, ele foi à Florianópolis, ele foi à Santa Terezinha, foi Bahia, Paraíba. E aqui no Ceará quase todo. Tudo andando mais eu, sempre. Não falta brincadeira para nós, não! Mesmo aqui, em Icapuí nós brinca aqui e acolá, duas brincadeira no mês, nós brinca. Num mês não falta uma brincadeira não. Ele vai ficar no meu lugar. Eu me orgulho disso. Eu lá no cemitério mais mas eu tô vendo ele ir no meu lugar. É o que eu estimo e quero, que ele não abandone nunca esa brincadeira.
O teatro de bonecos é muito importante conhecer porque é da cultura mais velha que nós temos no Brasil e no mundo inteiro. Eu queria que a mãe e o pai levassem os filhos para ver a brincadeira, pra eles saberem como foi, como é que começou, como é a brincadeira, porque de tudo a gente dá para aprender. A cultura popular não é para abandonar nunca.
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