Mestre
26 De fevereiro de 2019
Fortaleza
11 de junho de 1964
João Pedro saiu de Juazeiro do Norte mas não esqueceu um dos preceitos do Padre Cícero: manter sempre um altar na sala e uma oficina no quintal de casa. Xilógrafo, gravador e cordelista ele produz suas muitas e belas criações – preto-e-branco e coloridas – na oficina com prensa e diversos materiais da lida, em sua residência, no bairro de Jacarecanga, região central de Fortaleza, onde ele abriu as portas para nosso encontro e pudemos constatar sua vasta produção. Cioso do seu trabalho, o Mestre mantém rotina de estudos, experimentos e busca de novas formas de juntar tradição e contemporaneidade.
Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.
“Ser mestre é voltar a ser aprendiz.”
Meu nome é João Pedro. Conhecido como João Pedro de Juazeiro. Sou de Juazeiro do Norte, mas resido em Fortaleza há 20 anos e trabalho com xilogravura. É o meu ofício na sustentabilidade familiar. Iniciei o meu trabalho aos 16 anos de idade, como poeta-cordelista. Somente em 1998 é quando dou início na xilogravura. Em 1999, venho receber o prêmio do IBEU aqui em Fortaleza. Acontece também minha primeira exposição, no IPHAN, a primeira individual e um workshop, ministrado por mim, na UFC. Resolvi ficar por aqui, trabalhando com a xilogravura. Antes, eu trabalhava com pomadas Padre Cícero e artefatos de alumínio.
A pomada Padre Cícero é uma pomada feita com produtos químicos. É uma pomada pra dor. Eu trabalhava vendendo ao romeiro a pomada Padre Cícero pra dor de cabeça, inflamação, inchação, coceira, pé rachado, frieira, dor nas juntas, dor nas costas, constipação, catarro no peito. Trabalhava no entorno da Igreja Matriz de Juazeiro, nos ranchos e também subindo até o Horto.
Mas a xilogravura proporcionou mais oportunidades, quando eu chego em Fortaleza. Vi a receptividade da primeira exposição, do prêmio e também na UFC dos alunos e professores. Então enxerguei a oportunidade onde o matuto poderia se encaixar e juntar o conhecimento de vendedor com o início também da xilogravura e trabalhar com vendas do meu trabalho e ter o sustento familiar. Passei um ano vindo de Juazeiro a Fortaleza toda semana. Após um ano, resolvi fixar residência na capital
Minha aproximação da arte da gravura aconteceu em 98.Eu já convivia com ela. Mas não tinha o conhecimento sobre o que era a xilogravura e não tinha interesse. Eu convivia com os meninos na Lira Nordestina, levando os meus cordéis para serem editados. Convivia com Expedito Sebastião, Stênio Diniz, José Lourenço e outros mais. Já era tido como um da casa, mas eu não tinha interesse sobre a xilogravura. Meu interesse era a literatura de cordel. Com eles e também com os poetas ali conversando e a troca de versos, uma coisa e outra. Mas quando chega, em 98, eu faço uma pequena pesquisa para um cordel sobre o folclore, nessa época, a Lira Nordestina estava ali, onde funcionava a estação ferroviária de Juazeiro, Lira Nordestina e a AMAR -Associação dos Artista e Amigos da Arte.
A Secretária da AMAR era minha amiga. E quando ela soube que eu estava com esse cordel sugeriu uma matriz dela para ilustrar o cordel, com o devido crédito. Entretanto, dias depois chegou um pesquisador de Fortaleza e comprou a ela umas três matrizes por um preço altíssimo e ia fazer a exposição dela. E ela comenta com os meninos que arrependeu-se de me passar essa matriz. Queria a matriz de volta. Eu agradeci e devolvi a matriz.
Ela estava extasiada com todo o glamour que ia chegar para ela. E dizia: “eu vou fazer a minha primeira exposição, na capital.” E me perguntou: “o que você faz com o seu cordel?” Respondi: eu edito e vendo a um cruzeiro – moeda da época – na escola. Dai ele disse: “João Pedro, você anda esmolando com esse seu trabalho. Vender um cordel por R$ 1,00. Vendi minha gravura por R$ 50,00 cada. Você não faz arte. Isso não arte. Arte é o que eu faço. Agora vou fazer uma exposição na capital.”
Dessa conversa eu sai para a Lira Nordestina. Quando entro, dou uns cinco passos, me vem de súbito, uma expressão que eu não tinha em mente. Eu abro a boca e sem pensar disse: eu vou fazer xilogravura. Os meninos olharam pra mim e riram. E disseram: “João, você vai fazer xilo? Você não sabe desenhar, você não sabe escavar. Você nunca olhou a gente trabalhando, nunca se interessou. Você vai fazer xilo?” Respondi: vou.
Eu quero madeira. Eles me deram três pedaços de umburana e me deram um preguinho, um estilete, um pedaço de lixa. E eu fui pra casa, morava por trás do Franciscanos. Saí da estação, fui para casa. No meio do caminho, eu pensei Meu Deus, pra que eu falei isso? Que ia fazer Xilo. Nunca nem olhei uma xilogravura. Com tantas que tem lá na Lira, nunca olhei eles trabalhando.
Eu me arrependi do que tinha falado. Mas eu pensei: já que eu estou com os tacos das madeiras que eles me deram, eu vou fazer. Então eu fiz umas garatujas. Apenas uns riscos, dando a noção de imagem e fiz um Frei Damião. Esse Frei Damião foi comprado pelo Professor Gilmar de Carvalho quando ele foi ao Juazeiro. E eu sei que eu passei a noite inteira trabalhando nesses três tacos de silos, disformes. E amanheci o dia e quando cheguei pela manhã lá na Lira e pedi aos meninos para imprimir. Eles imprimiram. E disseram: “João Ficou ótimo” Daí eu disse: eu quero mais madeira.
E fui começando e passava a noite trabalhando, fazendo gravura. Amanhecia o dia na calçada da Estação, esperando eles abrirem a Lira Nordestina para eu imprimir. Eu não dormia à noite e no terceiro dia o Zé Lourenço disse: eu vou te ensinar a imprimir, porque eu sozinho aqui, vivo imprimindo de todo mundo. Mas como você vive direto aqui na Lira você vai imprimir as suas gravuras.
Nessa época, o professor Gilmar de Carvalho estava fazendo sua pesquisa sobre xilogravura. Ele fornecia todo o material para os xilógrafos. Mas eu não era xilógrafo e, mesmo assim, eu comecei a pegar as madeiras toda noite e isso foi incomodando porque eu estava acabando com toda a madeira da Lira. Todo dia eu estava gravando a noite inteira. Não dormi à noite gravando. Chegaram a ligar para o Gilmar dizendo que eu estava acabando com a madeira, com o papel, com a tinta. O Professor respondeu: “deixem o João Pedro trabalhar que ele vai ser um bom xilógrafo”. Então são 30 e poucos anos até hoje. O professor Gilmar continuou comigo, me apoiando e acompanhando o meu trabalho. Com ele fizemos muitas coisas. Destaco, no início, o álbum Mitos do Nordeste. Então eu trabalhei nesse álbum : meu Padre Cicero, Frei Damião, Lampião, Maria Bonita. São 14 grandes heróis nordestinos, santos e cangaceiros e também escritores e beatos.
O professor Gilmar de Carvalho é uma das maiores mentes maravilhosas e benevolentes que temos na contemporaneidade, a mente mais brilhante. Tudo quanto ele toca vira ouro. Quando ele pegou os gravadores de Juazeiro… Hoje os gravadores estão nos patamares, nas grandes galerias, saindo para fora do país! O João Pedro chegou a Mestre da Cultura. E ele agora pegou os rabequeiros que também estão até participando com a orquestra. Com ele então tudo brilha. (Na época dessa entrevista o Professor Gilmar de Carvalho estava vivo e atuante)
Quando comecei eu passei a pegar restos de madeira no chão. E aí eu fui me reciclando bem mais, porque eu pegava aquelas madeiras com defeitos e aqueles defeitos tinha que surtir efeito. Então eu fui me aprimorando mais, eu fui evoluindo mais. E tanto que hoje eu trabalho com qualquer tipo de madeira.
Não tenho esse problema de trabalhar com madeira qualquer porque na região que chego – quando eu vou ministrar a oficina – uso madeira local. Porque trabalhar sempre com a matéria prima do Cariri – se torna caríssimo. Imagina o pessoal vir de São Paulo para Juazeiro do Norte, comprar o tronco de umburana, mandar cortar, serrar madeira e levar o taco de umburana? Então eu sempre trabalho com a madeira local, com todo tipo de madeira e com isso eu aprendi bastante.
O meu momento de ser um xilógrafo é no momento que um cliente está comprando a minha gravura, no momento que uma pessoa está dando a atenção a mim, ao meu trabalho, porque eu não sou xilógrafo. Eu sou uma ferramenta de composição da xilogravura. Não existe um xilógrafo formado. A cada dia ele necessita se reciclar, evoluir.
A xilogravura já me deu muita coisa. Então eu acho que isso serve para me fortalecer e, como se diz, afiar um pouco mais essa ferramenta de composição da xilogravura. Eu fiz apenas duas viagens para fora do país, que foi para a África e para Portugal. Fui para Coimbra e para Cabo Verde. Exposições, eu fiz uma individual na Alemanha. Em vários países já fiz várias exposições. E tenho vários prêmios: Sesc daqui e Sesc de São Paulo, o prêmio do Ibeu. E também várias comendas e homenagens.
O cordel continuo fazendo. Tanto escrevo o cordel, como edito também. Não só cordéis meus. Mas de alguns amigos também. .A tipografia, Padre Cícero é minha editora de cordel. Mas não uso o nome editora, Uso o nome tipografia. Tipografia e folheteria. Não uso o nome editora e nem livraria.
O povo diz: “João Pedro é do tempo da lamparina ” porque eu gosto de juntar a tradição com a contemporaneidade. É assim que temos uma história completa. Então eu continuo fazendo cordel. Meu cordel é bem tradicional, com xilogravura. Continuo fazendo, escrevendo, editando. E livros também. Teve um que foi o meu primeiro livro sobre xilogravura, que foi contemplado pelo BNB e editado em 2008. E teve a segunda edição por conta própria e a terceira edição pela editora Queime a bucha. E agora ele está sendo reeditado novamente.
Ser mestre é voltar a ser aprendiz. É aprender. Porque ser mestre não é somente aquele que ensina, aquele que repassa seus conhecimentos, mas o que divide os conhecimentos e adapta os seus conhecimentos com as inovações que surgem com aqueles que estão com ele. Então, eu acho que ser Mestre é , no meu caso, uma retomada ao início, à minha iniciação; estou fazendo isso e trazendo tudo à tona novamente e estou buscando mais desenvolvimento e adaptando meus conhecimentos com os que estão surgindo, readaptando meu trabalho com a modernidade. Eu acho que ser Mestre é justamente isso. É você acompanhar o desenvolvimento, evoluir um pouco mais e evoluir também aqueles que estão com você.
A maestria está no fazer. O importante não é eu ser Mestre. É fazer coisas com maestria, coisas boas. Porque o que irá me dignificar serão as coisas boas que eu fizer. Então acho que o importante não sou eu. É o meu trabalho.
Eu me apoio nisso. E esse reconhecimento que foi feito eu só tenho a agradecer a essas pessoas que estavam na curadoria porque eles são bem mais mestre que eu. Que mestre é aquele que torna um outro mestre. Esses são mestres. Eles tiveram e um olhar bom, um olhar grandioso de qualificar a minha pessoa como mestre.
E tenho que agradecer ao Governo do Estado, que criou esse projeto, para os Mestres da Cultura, os Tesouros Vivos, porque eles pensaram não só em qualificar o artesão, mas também em dar oportunidade para eles terem continuidade, com esse salário para eles. E eles não pensaram só em homenagear. Eles pensaram em todo. Eles dão a cobertura completa e estão sempre acompanhando nosso desenvolvimento.
Quando eu recebi o título de Mestre, eu já era bastante reconhecido. Porque eu tenho um currículo bastante grande, com dezenas de exposições, tanto aqui como no Sul, fora do país, em vários países, vários prêmios e dezenas de oficinas. Mas o título valeu para modificar muito algumas mentes com julgamentos pejorativos a meu respeito. Eu acho que esse reconhecimento veio mudar muito isso.
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