Mestre
24 de setembro de 2007
Crateús - Região dos Inhamuns.
06 de maio de 1937
O prédio centenário da antiga estação ferroviária de Crateús foi o local escolhido pelo Mestre Lucas Evangelista para conversarmos. Desde o primeiro contato telefônico ele fez questão de marcar ali nosso encontro. Apesar da importância da edificação para o município, o que motivou o mestre na escolha foi naquele local funcionar a Academia de Letras de Crateús. Membro fundador da instituição ele ocupa a cadeira de número 8, cujo patrono é também um poeta popular, o paraibano Leandro Gomes de Barros. Memorialista, Lucas Evangelista, faz seus versos baseado nas histórias que ouvia de sua mãe, e em vivências cotidianas do passado mais longínquo e também de experiências recentes. Orgulhoso de sua obra fez um relato emocionado de sua vida, sob o olhar do também acadêmico e amigo Raimundo Candido Teixeira Filho.
Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.
“Eu me criei à custa da cultura, fazendo cultura.”
Nasci em Ingá, zona rural do Município de Crateús. Num local chamado Várzea da Calambanha, no meio do Açude do Carnaubal. O meu nome é João Lucas Evangelista, um nome dado pela minha mãe. Aí como mestre me batizaram como Mestre Lucas Evangelista. Eu morava em uma casinha muito humilde lá no sertão de Crateús. A porta era uma esteira. Era toda de taipa e a maior parte da coberta era de palha, só uma pequena parte que era coberta com telha. Eu me lembro muito. Já fui lá várias vezes como uns amigos, pesquisadores, mostrar onde eu nasci.
Minha mãe era uma mulher que gostava de poesia. Então ela tinha muito texto de versos na memória e contava histórias à noite pra gente, pra mim e pra meu irmão. Meu pai também gostava de cantar versos, essas coisas… versos antigos.
Ele morreu de sezão, uma febre, em 1940. Eu tinha cinco anos, e o meu irmão três anos … E nós começamos a pelejar para sair fora, na luta de viajar e eu fiquei mais minha mãe viajando, andando, ajudando ela a ganhar a vida pra nos sustentar. Porque nós não ficamos com nada quando meu pai morreu.
Mas quero frisar que a herança maior que eu tive da minha mãe… ela não me deixou mais nada – são as lembranças das toadas que ela cantava e dessas toadas eu fiz versos que ganhei muito dinheiro, como foi a Carta do Marginal.
Quando eu era pequeno, o pessoal me botava mais dois, três, quatro meninos pra ir chamar uns tocador – tocador de harmônica – naquele tempo era harmônica… pra fazer um forró. E aí juntava moça e rapaz naquelas fazendas – ou engenhos – aonde a gente trabalhava, eu e mamãe. Ela trabalhava lutando com o gado e cada dia ela ganhava era 2,50 reis – dinheiro daquele tempo – e eu ganhava a metade e servia para ajudar na nossa vida cotidiana porque eu dava tudo para ela. Nas casas de farinha, mamãe era raspadeira de mandioca e eu passava o dia todim carregando mandioca – do roçado para a casa de farinha. Por isso que eu fiz muita coisa dizendo assim: “eu já montei muito em touro, já botei máscara em touro, tangi burro em bulandeira, torrei farinha no forno, já tirei manipueira, mas a coisa mais bacana foi ver o namoro da serrana no balanço da peneira.”
De tudo que eu vivia eu fazia uma gravação. Quando eu andava com os meninos pelos matos, pelos cantos por aí afora, eu já vinha montado num cavalo cantado uma música, a história do rei valente, de um príncipe brabo. Eu não sabia de nada disso. O que eu sabia era da minha mãe contar as histórias. Por isso que eu inventava.
Pois bem. Depois que conheci as letras, eu comecei a cantar. Comecei a fazer versos.
Foi assim que eu comecei a minha vida, que eu dei início toda esta arrumação da minha vida, e comecei a escrever e cheguei a ser um artista cantador, violeiro e escritor de verso da literatura de cordel. Eu descobri uma coisa, que poeta nenhum tinha descoberto ainda, uma modalidade de cantar. E todo poeta me pergunta como foi que eu criei aquela toada tão diferente de todos os violeiros do mundo. Minha viola não tinha o som dos mesmos violeiros. Minha viola era criada por mim, com minha personalidade. E foi aí que a minha toada pegou tanto valor, porque a toada da minha viola é diferente dos outros violeiros. Eles ficam cantando “lengue, tengue, tengue, lengue, lengue, tenge”. Eu não tenho lengue, tengue. Eu vou cantando a música, eu vou cantando a toada. Essa mesma toada eu cedi para muita gente e foi quando ela chegou ao comércio da música – ela foi gravada em forró, ela foi gravada na viola. Eu gravei na viola, mas também foi gravada em forró. Uma banda do Ceará gravou ela em forró. Daí veio outra música: Caboclinha. Mamãe cantava essa música. Eu criava em cima do que ela cantava, eu criava uma toada.
Eu comecei a fazer versos para cantar nas praças porque eu via os cantadores de Juazeiro, de Pernambuco cantando e declamando versos nas praças e vendendo os versinhos, o cordel… história disso e daquilo outro. Eu via os outros fazerem e ganharem dinheiro. E eu também comecei a ganhar dinheiro fazendo aquilo, depois que eu comecei a fazer versos. O primeiro verso que eu fiz foi Os Valentões do Sertão de Maria Pereira. Foi uma história que eu vi acontecer numa festa – uma briga do sertão -. Depois eu fiz a história que minha mãe contava de manhã. “Era uma vez, uma princesa, uma rainha na beira do rio vermelho, nas margens do Rio Vermelho…. “ uma história que mamãe contava pra entreter a boca da noite, debulhando feijão no sertão, contando até meia noite e o pessoal escutando. Contava até o fim da história, uma história linda que está escrita no grande romance a Princesa Irmã da Cobra, de Lucas Evangelista. Contei em rima, do jeito que mamãe contava a história, em prosa. Então ficou uma história muito bonita. Essa foi a primeira história que eu publiquei. Quando eu recebi os exemplares foi a coisa mais linda do mundo. Botei na capa do romance uma princesa, um cartão postal – que naquele tempo se botava o cartão postal na capa de um romance. Botava era um cartão postal, não era um desenho. Depois eu aprendi a fazer xilogravura e os meus versos foram feitos com xilogravura, feita por mim. Mais tarde, eu cansei de fazer xilogravura e fiquei só no desenho.
Eu vendia verso era cantando na rua. Pra cantar verso antigamente… eu aprendi com o povo da praça de Fortaleza. Os artistas que vinham de Juazeiro, que vinham da Paraíba e do Pernambuco. Só poeta legítimo e eu não sabia quem eram. Chegava nas praças e iam vender. Vendiam romance e outras coisas intermediárias… Um complemento do artista. Se ele não ganhou com o verso, ele ganhou com outra coisa. Ele vendia um cinto que ele tinha trazido de Juazeiro, um bocado de chapéu, uma meisinha, um óleo, a pílula que inventaram de matar vermes. O poeta tinha sempre uma coisa de lado. O companheiro dele era uma pasta com qualquer coisa. Eu comecei a vender verso e quando chegava no meio do verso, eu parava. Aprendi com eles. Eu parava a história e dizia: só termino se comprar ao menos mais cinco versos. Brincadeira de praça. Então a gente trabalhava brincando na praça e achava bom vender o versinho.
Eu fazia versos e fazendo versos eu fazia as toadas, botava as toadas. Foi quando veio o ” Fom, foron fom fom”. Quando eu fiz a música do Fom, foron fom fom, já fazia muito tempo que ela estava no meu pensamento porque tinha um o sanfoneiro – um caboclo que não sabia nada, só bebia cachaça – ficava lá no pé do balcão e tocava num fole véi furado que ele comprou lá não sei de quem; uma sanfona velha furada e arranjou um zabumba velho e um triângulo enferrujado. O pensamento era esse e aí foi quando eu fiz a música do Fom, foron fom fom:
Zé Davi um cachaceiro, desses de pé de balcão / Resolveu ser sanfoneiro. lá na nossa região / Conjunto Chico vida, pegou fama no sertão / No lugar onde passava passava / De tão ruim que ele tocava / Servia de mangação / Fom, foron fom fom foron fom fom / Fom, foron fom fom foron fom fom / Fom, foron fom fom foron fom fom / a poeira levantando e os cabra bebo gritando / dizendo ôh conjunto bom /
E assim foi que eu fiz a história do sanfoneiro Zé Davi. E a história foi contada, fiz ela em verso. Quem era o Zé Davi, como foram as presepadas dele…
O que eu faço é fácil de aprender, não é fácil, é rimar. Rimar, só rima quem tem um dom, de fazer a rima. Tocar, todo mundo aprende a tocar e a história todo mundo pode fazer a história, aprender a escrever história em prosa. Agora, criar a rima na história é que é difícil. É por isso que a gente não pode formar um aluno como poeta. Ele pode estudar, ser doutor, ser sanfoneiro, ser músico. Ser o que ele seja. Mas ser poeta, não tem quem o faça, se ele não trouxer o dom de dentro, pra rimar, pegar as rimas…
Eu ia subindo esses degraus, nas praças, nas cidades por onde eu andava, no mundo , em todo o Brasil. Eu achei que tinha de ser mais do que o pessoal achava que eu fosse, porque todo mundo gostava dos poemas que eu fazia, dos versos que eu fazia, eu era uma coisa importante. Então eu achava que eu poderia ser alguma coisa mais… E aí quando saiu este projeto da Cultura, dos mestres da Cultura, eu dizia que se aparecer um mestre da cultura sobre literatura de cordel, que não seja eu, tá errado. Ou tá errado ou tão mentindo. Por que além de cantar, de ser um poeta cordelista, eu gravo a história e ainda ensino as pessoas em oficinas, participo nos colégios de palestras. Faço tudo isto para o povo ver e aprovar. E ser mestre é fazer tudo isso. E eu fiquei muito satisfeito quando eu recebi a notícia que eu estava colocado no quadro dos mestres, com um ano que eu tinha me inscrito. Porque prosa, prova, pesquisa, eu já tinha feito muito e muita gente já falava sobre mim. Mas nunca tinha recebido nada que me agradasse tanto quanto está no quadro dos mestres, por que eu sou filho da cultura, bebo água da fonte da cultura. Eu me criei à custa da cultura, fazendo cultura e não foi outra coisa.
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