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Mestre

Pajé Luís Caboclo

Luís Manoel do Nascimento

Mestre em Cultura Indígena

Publicação no Diário Oficial do Estado

22 de outubro de 2008.

Cidade/Residência

Itarema (Almofala - Localidade de Varjota) – Região do Litoral Oeste.

Nascimento

13 setembro de 1951.

Relato de Viagem

Depois da chuva que passamos na casa do Cacique João Venâncio, em Almofala, fomos ao encontro do Pajé Luis Caboclo. Ele estava indo para uma visita e, mesmo assim, resolveu adiar a saída. Com disponibilidade e rapidez colocou as indumentárias, trouxe sua bolsa de palha – quase um surrão – onde traz seus perfumes e meisinhas cheias de encantos; trouxe as flechas, o maracá e, de pronto, dançou um torém solitário debaixo do coqueiral que rodeia sua casa. O Mestre, quando está com o cocar e a vestimenta tradicional indígena, é uma entidade e traz consigo a força de quem conhece os mistérios da natureza e de quem pode invocar os ancestrais Tremembés. O frescor do vento frio nos embalou até a noite numa prosa sobre a cura, o tempo e os encantos dos índios do Ceará.

(Cantando)

Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.

“O médico chega com a medicina convencional e diz: não pode tomar remédio sem consulta e proíbe a nossa medicina tradicional. “

Eu sou Luís Manoel do Nascimento. Nascido e criado aqui na localidade de Varjota, Almofala. Sou conhecido como Luís Caboclo, Pajé dos Tremembés de Almofala. Não só dos Tremembés de Almofala como dos Tremembés do litoral dessa região toda – que eles atuam do rio Gurupi – do Maranhão ao Rio Grande do Norte.

Outro dia, nós Tremembé aqui de Almofala, fomos dar reconhecimento a um grupo em Raposa, no Maranhão. Lá, Imperatriz, Tutoia e São Luís do Maranhão foram antigos aldeamentos do povo Tremembé. Eles passavam uns tempos e desativavam os aldeamentos. Em seus percursos, os Tremembés chegaram em Almofala. Esse aqui nunca foi desativado.

O meu avô era curador e pajé. Não podia era dizer, porque era proibido e porque era sentenciado à morte. O papai era pajé. Também não podia dizer. Chamava-se curador porque não tinha autoridade de falar que era pajé, porque senão era assassinado cruelmente. Eu, que também era curador, a partir de 1988 – da Constituição Federal – me dediquei como pajé. Vem do berço. É vocação familiar. A gente não é votado. É uma coisa hereditária, vem por família. E aí continuo até hoje sendo pajé do povo Tremembé.

E nós temos nossos curadores. Nós temos as pessoas que baixam entidades, os donos de terreiros; tem também os médicos que nos acompanham aqui – uma equipe da Funasa. Os médicos quando chegam, eles fazem parceria com a gente. Tem doença que o médico encontra e tem doença que o médico manda para mim. O que vem para mim eu curo. Ás vezes eu digo: vá pra curador fulano de tal. Vá e diga a ele que reze disso. E eles rezam de quebrante, de vento caído, uma costura do nervo trilhado, pra reumatismo, pra curar de trombose – que pra nós chama-se tradicionalmente de ramo. A trombose é um ramo que deixa sequela, ela dá derrame no cérebro. Se ela der direto no coração, mata na hora. Tem ainda um ramo enfraquecional que é o nervoso – enfraquece o cérebro e pega um medo que chama-se depressão. O médico botou o nome de depressão….Com medo das coisas, de tudo, muitas pessoas até se suicidam, chegam a esse fim.

A gente sabe curar. Mas o médico chega com a medicina convencional e diz: não pode tomar remédio sem consulta e proíbe a nossa medicina tradicional. Porque a consulta só quem pode passar é o médico.
A medicina tradicional é sagrada. Ela é a própria natureza em si. Ela cura muitas doenças. A medicina do próprio médico também vem da natureza. Ela também vem da medicina tradicional. Mas aceitar que um analfabeto, no caso, uma pessoa qualquer, um índio tenha o direito de fazer uma cura que o médico não se atreveu a fazer, eles nunca vão.

É assim que funciona. Tem remédio que a gente não conhece mas na hora da necessidade vem uma visão e diz: “Vá, pegue um remédio, fulano de tal.” Isso se chama-se encanto e aí a gente vai e dá certo.

Ao longo dos meus tempos de criança o papai acompanhava as mulheres. Na época, não tinha médico. Quando tinha uma mulher pra “descansar’ porque tava sofrendo dor de parto, pra dar a luz a uma criança – que é parir, na medicina convencional – a gente chamava as parteiras e as mulheres. E o papai era chamado pra rezar, pra ajudar, por que a mulher ficava fraca, passava dois, três dias sofrendo, e ele ia pra rezar pra ela ter força e dar à luz à criança. E o papai fazia isso só entre o seu povo. Era só dentro do aldeamento porque era só nós aqui e as estradas eram de terra. E só existia nós aqui e pronto. E eu convivi do meu nascimento até uma idade de quinze anos, eu convivi isso com meu pai. E eu também comecei a fazer isso, tradicionalmente. Vocacionalmente eu comecei a fazer isso.

Eu não aprendi nada do que eu faço. Eu sou especialista em encanto. E a gente vivia encantado no encanto. Vivia num meio que ninguém sabia com nossos saberes, costumes e tradição… tudo era a mesma coisa – sem esquecer nada – só aprendendo com a evolução do tempo. A gente tem uma frase que diz: o tempo destrói o tempo / o tempo transforma o tempo e o tempo constrói o mesmo tempo. Porque é o tempo que vem fazendo essa história.

Com toda essa trajetória a gente começou a andar na justiça e começou a procurar direitos, se juntar com outros povos dos outros estados e dos outros países. Começou a ir pra Brasília, andar de avião, fazer tudo isso. Isso eu aprendi. Eu aprendi a ser civilizado porque comecei a ver a sociedade, andar ali dentro. Mas o que eu sei, o conhecimento da tradição, eu devo ao meu pai e aos meus ancestrais.
E o mais valioso é a sabedoria dos encantos. Porque é lá que a gente colhe todos os nossos saberes. Existem umas coisas que eu crio de mim, outras eu aprendi com meu pai e com meu povo, e outras, se eu fizer uma regressão até lá atrás – eu posso ver – posso ver meu povo há 150 anos usando coisas que não existem mais hoje. Isso eu crio, é uma criatividade minha que não existe mais na mente do povo.

A indicação de mestre pra mim foi uma coisa natural, não foi uma surpresa . Eu… toda vida me senti assim… é uma coisa minha. Foi mais uma valorização além do que eu já era.
A maior vantagem que eu achei de ser diplomado Mestre da Cultura foi o respeito. Antes o povo achava que a gente era uma pessoa qualquer e a gente sabia que não era. Porque a gente tem uma sabedoria que não aprendeu de ninguém, vem do berço. O médico é desenhado, ele aprende. A gente não sabe escrever, não sabe ler, mas sabe o que é a medicina tradicional, o que é o lado da espiritualidade, o que é o encanto… Se eu olhar pra você, na vista das pessoas, a gente vê as diferenças. Cada pessoa é diferente. Ver isso é sabedoria. E o importante é essa sabedoria que a gente tem. Que ninguém aprendeu de ninguém. Tem em si próprio e, por isso, o meu diploma de mestre só veio qualificar uma coisa que eu já era, de criança. Uma coisa que veio do berço. Eu me sinto grato.