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Mestre

Macaúba

José Felipe da Silva

Mestre de Música Chorinho

Publicação no Diário Oficial do Estado

15 De maio de 2018

Cidade/Residência

Caucaia (Região Metropolitana)

Nascimento

30 de julho de 1943

Relato de Viagem

Uma casa na praia com vento que embala coqueiros na Praia de Iparana é o simpático e aconchegante abrigo do Mestre Macaúba. Ele e sua mulher Isabel nos acolheram com frutas tropicais, bolos, água de coco para uma roda de conversa temperada com musica popular brasileira e choro, muito chorinho. Macaúba, numa rede ou na cadeira de balanço na varanda relembrou suas andanças pelo Ceará e pelo Brasil, reverenciou pai e mãe, contou muitas histórias da música, dos causos e da noite e revelou planos para o futuro: quem sabe a reedição do Macaubar? Entretando o que mais ele evidenciou foi seu amor pela música.

(Cantando)

Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.

“Eu sou da noite.”

Meu nome é José Felipe da Silva, sou músico a vida toda. O meu pai era músico e o meu brinquedo foi um instrumento. Meu pai não queria que eu tocasse para não aprender a beber, mas não teve jeito. Eu comecei a tocar com sete anos de idade, brincando com o instrumento em casa. Mas ele não queria que eu tocasse e levou os instrumentos para outra casa. Então, a minha mãe ficou com pena de mim. Eu chorei muito e ela fez ele trazer os instrumentos. Ele disse que trazia os instrumentos, mas não me ensinava nada, porque meu pai sempre foi músico, mas nunca viveu de música. Meu pai era ourives, consertava relógio, consertava revólveres da Secretaria de Segurança Pública.

Quando ele ia tocar nos batizados, nos aniversários eu ficava de longe, na janela, pescando. Pescando você sabe o que é?: vendo, observando. E quando chegava em casa, aquilo que tinha visto ele fazer eu ir fazer também. Então assim foi indo a vida. Eu fui crescendo, crescendo e viemos aqui para Fortaleza. Comecei a trabalhar no meu primeiro emprego, que foi na oficina mecânica, de funileiro.

Depois, passei a trabalhar na tinturaria, na Guilherme Rocha. Depois, trabalhei na fábrica de tecido. E não durava em emprego nenhum, porque minha história era tocar. Eu só chegava atrasado no emprego. Porque chegava em casa, depois do serviço, pegava o cavaquinho e saía. O pessoal se aproveitava de mim, que eu era pequeno e abobalhado: “vamos tocar aqui… vamos tocar ali…” Assim amanhecia o dia e eu perdia o horário de emprego e perdia o emprego.

Um dia o meu pai me pegou e disse: “eu vou lhe levar para o emprego que você não vai perder.” Era na fábrica de alumínio Ironte. Uma fábrica que fazia panela, fazia tudo. “Está aqui, coloque ele no pior serviço que tiver. Pra ele não faltar mais ao emprego”, foi o que ele disse ao encarregado. Então, eu entrei como varredor na Ironte. Eu ia varrer as máquinas e pegar as rebarbas de alumínio para voltar para a fundição para derreter. Um dia, eu não varri direito a máquina de um camarada. Ele não ficou satisfeito e me deu um cascudo que levantou o calombo. E os outros trabalhadores começam a dizer: “ ôh cabeça parecida com a macaúba.” Foi assim que o meu apelido Macaúba pegou.
Nesse emprego, eu demorei 24 anos. Eu me fiz lá. Mas sempre tocando.

 

Em 1970, me convidaram para tocar no restaurante Roda Gira, na parte de cima da rodoviária. E lá, eu passei a tocar às quintas-feiras e sempre trabalhando na fábrica de alumínio. E sempre a gente tocando, em batizado, eventos e tudo.

Quando foi um dia, passei a frequentar o Bar da Gia. Um bar perto da Faculdade de Medicina onde o cardápio era Gia. Então, eu ,mesmo trabalhando na Ironte, nos dias de sextas e sábados, que eram a minha folga, ia lá e dava uma canja. O pessoal gostava. Também por lá, estava o violonista Pedro Ventura.

Ele viu minhas mãos cortadas de alumínio e falou: “suas mãos cortadas desse jeito… se você deixasse aquilo ali, viesse tocar, tuas mãos não ficavam cortadas assim.” Eu comecei a pegar aquela corda e resolvi pedir minhas contas para tocar no Bar da Gia.

Do Bar da Gia eu fui tocar no Nick Bar. Era um bar bem pequenininho. Mas só frequentava deputado da Assembleia. Era um bar de deputados. Paulino Rocha, Gomes Farias, aquele pessoal daquele tempo. Então eu passei a tocar lá todas as noites.

Foi aí que surgiu o restaurante Lido, um restaurante muito luxuoso, da Praia de Iracema. E me convidaram para tocar lá no final de semana, sextas e sábados. Nesse período, surgiu também o trio elétrico da Brahma.(Resolveram trazer um trio elétrico tipo os da Bahia pra cá.) Eu que já tocava uns frevos, fui contratado pela Brahma. Toquei lá por cinco anos lá. E foi assim que comecei. Tocando nos bares da vida, fazendo evento.

Viajei para Manaus. Fui convidado para representar o Ceará em Brasília, no Clube do Choro. Eu, Zivaldo Maia e Aluísio do Pandeiro. E lá, nós fomos muito bem recebidos. Ganhei um bandolim. Cheguei em Brasília de sandália Melissa. Todo mundo olhando para os meus pés. E eu fiquei todos os anos indo para Brasília.

Depois, o trio elétrico foi transferido para Manaus. Eu fui e passei 70 dias lá em Manaus. Queriam que eu ficasse lá, morando, mas eu tinha um bocado de filhos. Nesse tempo, eu era casado e tinha muitos filhos. Não podia transportar uma ruma de filhos para Manaus. Nisso, deram baixa da minha carteira da banda da Brahma. Eu fui demitido porque eu não quis ficar em Manaus. E voltei para Fortaleza.

Em 85, a dona Belisa Guedes era secretária de gabinete da Prefeita Maria Luísa. Ela me convidou para tocar na banda de música. Acontece que, na banda de música só tocava quem soubesse partitura. Eu não sei partitura, não leio, não escrevo. Mas além da banda geral, criaram uma regional, de pau e corda: cavaquinho, bandolim e violão. Eu fiz parte desse conjunto. Eu me aposentei pela Banda de Música de Fortaleza e hoje sou Mestre da Cultura, agradecendo a todo mundo que fez eu ser Mestre. Porque não tinha choro na maestria.
Ser Mestre é a pessoa ter a vivência que eu tenho. Uma vivência do meu brinquedo ter sido um instrumento. A partir de oito anos de idade, eu já conhecia um bandolim. Eu passo o dia com o bandolim na mão. Tenho as minhas tarefas, mas o resto é a paixão que eu tenho mesmo por música. Eu amo tocar.


Eu aprendi música nas radiadores, nas quermesses. Mamãe me dava quinhentos réis. E eu botava a mensagem na música de Jacó do Bandolim ou Valdir Azevedo. Eu pedia, inventava a mensagem – porque tinha que botar a mensagem, pra música sair no serviço do auto falante. Pedia muito um choro do Jacó. Ouvido bom, chegava a decorar. Os quinhentos réis só dava para ouvir uma vez. Chegava em casa lembrava do que ouvia, já decorava aquela parte. No outro dia, mais quinhentos réis para ouvir a outra parte e aprender o resto da música. Mas eu tive sorte! Vizinho a minha casa foi morar um funcionário do Dnocs que tinha todos os discos do Jacó e de Waldir Azevedo. Só deu pra mim! Ele era biriteiro e passava o dia ouvindo e eu de casa só decorando, decorando, decorando… E foi assim.


E gosto de ensinar. Eu estive em Apiuarés, passei quatro anos lá. Fiz um conjunto de choro e um conjunto de samba. Minha mulher trabalhava na parte de música. Então eu peguei dez meninos e botei tudo nos eixos. Deixei todo mundo tocando. Ganhamos três festivais e foi assim que eu saí com um trabalho muito bonito de Apuiarés. E hoje eu tenho afinidade com o jovem. Ajudo. Eu posso ajudar com o que eu sei.


O amor pela música nasceu vendo meu pai tocar. Ele chegar de madrugada – que o pessoal todo fazia seresta para a minha mãe. E minha mãe acordar e, com fogão a lenha, fazer tira gosto. Eles se reuniam embaixo de um cajueiro que tinha lá em casa. Meu pai não queria que eu encostasse, e eu ficava de longe, olhando aquilo, vendo aquilo bonito. É um dom de Deus. E hoje, eu tenho filhos, netos que tocam. Eles herdaram o sangue do avô.

O meu pai era incrível! Nunca viveu de música e foi muito carrasco comigo. Em uma ocasião ele foi tocar no teatro de bonecos e faltou o violonista. Nesse tempo, eu já estava engatinhando, pegando o violão… E assim, a minha mãe disse: “ vai Zequinha”, – nesse tempo meu nome era Zequinha – “teu pai tá lá sem violão. Pra começar o evento estava faltando só o violão”. Eu fui… me “empiriquitei” todo. Cheguei lá com o violão… a maior decepção. Meu pai me mandou voltar. Ele disse: “ volte, você não sabe tocar.” Anos depois, meu pai se orgulhava de mim.

E sou da noite. Toquei 50 anos na noite. Toda a noite, toda a noite, toda a noite, toda noite. E foi assim a minha vida. E tem muita história.

E na noite se toca tudo. Houve um tempo que não tinha emprego para chorão. Por exemplo: se tem um conjunto que só toca choro, a casa noturna não empregava. Então, eu ingressei no samba, na bossa nova, no frevo. Mas a preferência sempre pelo chorinho. Das casas em que eu toquei, a que mais aguentou o choro foi o Cais Bar. Toquei 11 anos lá. “Esperando a feijoada”. Muita gente boa: Joaquim Ernesto, o Chico Barreto… Pessoas inesquecíveis, doidos pela música popular brasileira. Lá eu gravei meu primeiro LP, gravei em vinil, com direção da Dona Bel. Depois eu fiz o CD “Esperando a Feijoada”, e depois fiz o “Meu Bandolim”, que é um choro-disco que eu fiz em homenagem à minha mãe.

No Cais Bar antigamente tinha os bilhetes. O bilhete era “pedido” de música. Tinha uns bons que vinham com uma cédula dentro. Quando foi um dia , o camarada mandou um bilhete pra mim com os dizeres: Seu Carnaúba toque “aldeon” do Jacob do tamborim. Ele errou as três frases: Jacó do Tamborim, não existe, Aldeon, não existe e Carnaúba não existe. A noite é muito engraçada.

E ainda teve o Macaubar : num bar que rolou de 1995 a 1997 aqui do lado de casa. Nesse tempo eu tinha muito contrato, eu tocava em todo canto. A noite toda. E o pessoal vinha para me ouvir. O movimento era sábado e domingo. Os músicos que vinham dava para fazer uns cinco conjuntos. Vinham tocar de graça e ainda pagava conta. Era muito bom.


Hoje eu sou agradecido em ter sido escolhido Mestre da Cultura. Agora sou convidado para eventos e para dar palestras. Sou muito alegre. Eu sou feliz com o que eu conquistei… não tenho dinheiro, mas tenho felicidade. Tenho paz, tenho muitos amigos. E mudou muito ser reconhecido. Conhecido eu sempre fui. Mas agora sou mais respeitado.