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Mestre

Paulão Ceará

Paulo Sales Neto

Mestre de Capoeira

Publicação no Diário Oficial do Estado

15 de maio de 2018

Cidade/Residência

Fortaleza/Budapeste

Nascimento

14 de janeiro de 1961

Relato de Viagem

Mestre Paulão é um cidadão do mundo. A capoeira lhe deu esse destino. O encontro para a conversa sobre sua trajetória deu-se em Fortaleza em uma de suas visitas à capital cearense. Quem dera pudéssemos ter ido encontra-lo em Budapeste, onde mora há 20 anos. A academia de um discípulo foi aberta especialmente para esta roda de capoeira que reuniu companheiros do início da jornada e novos alunos perfazendo a terceira ou quarta geração de capoeiristas cearenses que fazem essa arte/esporte cada vez mais viva e disseminada.

(Cantando)

Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.

“A capoeira é uma luta, é uma dança, um jogo. É um sentimento.”

Meu nome é Paulo Sales Neto. Sou cearense da Praia de Iracema e sou conhecido na roda de capoeira como Mestre Paulão Ceará. Eu comecei a capoeira aos 15 anos de idade, jogando bola e vendo um amigo meu jogando capoeira lá na Praia de Iracema. E isso me encantou. Então, fez com que eu me empolgasse e passasse a praticar a capoeira.

Desde então, pratico a capoeira com motivação dos meus familiares. Tivemos muitos tempos difíceis no período onde a capoeira era um pouco discriminada. Mas nós conseguimos mudar essa mentalidade, fazer com que a aceitação da sociedade cearense para a capoeira fosse favorável e positiva. Tivemos muitas adversidades, mas nós conseguimos fazer grandes eventos aqui. Grandes encontros, na época chamado Encontros Nacionais, trazendo grandes mestres da Bahia, do Rio de Janeiro e de outros estados do Brasil.

Tive uma formação escolar até o segundo grau, fiz o vestibular. Passei, mas por consequência da minha viagem para a Europa, que foi em 1994, eu tive que abandonar. E lá na Europa foi onde eu comecei. Foi na Holanda, o primeiro país onde eu cheguei. Situação difícil, porque costumes diferentes, língua diferente, clima diferente e um lugar onde poucas pessoas conheciam a capoeira.

Então foi um trabalho bem de início, divulgando a capoeira. Nos primeiros dois anos estava meio difícil, foi a dificuldade e foi o momento de investimento que nós fizemos, divulgando a capoeira em centros culturais, em academias e, no verão, nas ruas, com apresentações de roda de rua. No terceiro ano, a capoeira explodiu e do quarto ano em diante, foi a moda, que perdurou por 12 anos em todas as academias, na Europa inteira.
Existia uma migração de capoeiristas para a Europa muito grande. Nosso grupo mesmo fez um trabalho de levar até a Europa, capoeiristas. De dar oportunidade para quem gostaria de exercer a profissão de capoeira lá fora, de construir a sua vida. Então, o grupo Capoeira Brasil, através do mestre Paulão Ceará, deu essa oportunidade a todos eles. Para que eles decidissem. Alguns ficaram, alguns voltaram por questão de adaptação e essa adaptação não é fácil.

Hoje, o grupo Capoeira Brasil está em 25 países e em 65 cidades. A sede principal é aqui no estado do Ceará, onde a gente fala que é a origem, onde é a raiz e muitos dos europeus vêm aqui treinar. Porque isso faz parte da nossa regra. Cada vez que o capoeirista vai se graduando, vai pegando experiência, a gente pede para eles virem no Brasil, saber como o povo brasileiro vive a capoeira, como o povo brasileiro desenvolve a capoeira.

Com o passar do tempo, eu fui congratulado com o título de Mestre da Cultura dos Tesouros Vivos do Estado do Ceará. E paralelo a esse título, eu recebi o título do doutor do Notório Saber da Cultura Popular pela Universidade Estadual do Estado do Ceará.

Esse título foi de grande importância na minha vida. De um reconhecimento de todo um legado vivido durante 45 anos, dedicado intensamente à capoeira. Para os senhores terem uma ideia, a minha vida toda, durante esses 45 anos, foi super intensa. Todos os dias com capoeira. Divulgando, levando capoeira além das fronteiras. E esse título me deixou muito honrado, muito feliz, porque demonstra o respeito e a notoriedade que a capoeira deu para o meu estado.

E estou usufruindo hoje desse título de várias maneiras. Aonde eu vou aqui no meu Estado, no Brasil ou no mundo, as pessoas comentam sobre essa congratulação. Eu falo particularmente na capoeira e isso me dá um prazer muito grande.

O grupo Capoeira Brasil foi fundado por uma motivação que nós tivemos dos
fundadores do Grupo Senzala. Mestre Paulinho Sabiá, Mestre Boneco e eu fomos os
três fundadores. Fazíamos parte do mesmo grupo que era o Grupo Senzala. Houve um impasse e com esse impasse ficou difícil, difícil de reatar, de continuar dentro do
Grupo Senzala, com o mestre da gente.

Fomos até os mestres fundadores do grupo Senzala e pedimos uma opinião. E a nossa primeira fala foi em querer ficar no Grupo Senzala e eles disseram, usando a ética moral, que seria muito fácil pegar três capoeiristas já confirmados e eles preferiram nos incentivar a fundar um grupo, o que na época, há 32 anos atrás, não era uma coisa normal, fundar um grupo.

Então, pegamos a ideia e partimos para o projeto. Começamos a elaborar todo o sistema do grupo. Como iria funcionar: símbolo, cores, nome, graduação, metodologia, filosofia. Passamos um ano fazendo esse trabalho até chegarmos a um denominador comum, até chegarmos à estrutura. E em 14 de janeiro de 1989, no Rio de Janeiro, em Niterói, fundamos o Grupo Capoeira Brasil, com o apoio da comunidade capoeiristica.

Nós temos grandes mestres como padrinhos do nosso grupo. Mestres famosos como o Mestre Itapuã, Mestre Suassuna, Mestre Gato da Senzala, Mestre Rafael, Mestre Peixinho e tantos outros. Nós fundamos o grupo para mudar uma mentalidade, porque a gente estava sentindo uma necessidade de mais harmonia, mais familiaridade. Então, no período, nos finais dos anos 80 e 90, a capoeira tinha muita rivalidade, tinha muita violência. Era um ciclo que a gente compreende, porque muitas pessoas queriam realmente mostrar o seu trabalho. E uma das maneiras negativas que a gente percebe, mas que para o futuro foi positivo, era essa coisa de mostrar quem era o mais forte. Então tinha essa rivalidade, mas só que chegou um momento que essa rivalidade começou a prejudicar e nós trocamos a filosofia. Botamos mais harmonia, mais amizade, porque o jogo, ele é decidido na roda.E aí partimos para desenvolver a capoeira como nós gostávamos.

Essa história das filiais, das redes que nós temos, ela surgiu naturalmente com a sinalização que nós percebemos, com a minha partida para a Europa. E estando lá, eu levava os alunos brasileiros para pra ter uma oportunidade na Europa. Uns ficavam e a gente instalava num país ou numa cidade. E outros voltavam. Ficava a critério de cada um. Democraticamente era resolvida essa decisão. E os que ficaram deram a ideia para filiar. Aí vinham outros estrangeiros, que gostavam da técnica, da maneira que o grupo se desenvolvia, da filosofia, da metodologia, da harmonia – que é um conjunto de vertentes muito importantes, que as pessoas passam a admirar no grupo, na sua filosofia – e vem se tornar membro dessa família.

E assim foi crescendo. Porque a capoeira tem um lado do business, que a gente faz dela uma profissão. Nós não temos ainda essa profissão regulamentada, mas fazemos dela uma profissão. Mas, ao mesmo tempo, nós temos essa irmandade, essa amizade, que a gente chama de família, que é uma coisa intrínseca à capoeira; não dá para você fugir disso.

É muito difícil você fugir disso e deixar o aluno só como cliente. Muitos já tentaram. Aluno como cliente que vai na academia, paga. Paga o royalties, compra instrumento ou compra o material. E não foi bem sucedido. Porque falta a parte afetiva, que é a da amizade, da irmandade, da familiaridade que temos, que é o que completa esse conjunto.

A capoeira é uma luta, é uma dança, um jogo. É um sentimento. Então, o momento é que te dá o caminho, te sinaliza se você vai lutar ou se você vai só brincar. A capoeira te dá inúmeras possibilidade. Ou você pode também chegar na roda, só cantar, só tocar. Então é o momento.

Um Mestre é ser exemplo. E essa história de ser mestre, ela é muito forte! Só que está sendo mal compreendida. Porque o mestre tem uma das coisas fundamentais fora o seu notório saber, o seu conhecimento daquilo que você faz, daquela arte, daquela cultura ou daquela arte marcial. Fora os fundamentos básicos, as técnicas, todo o conhecimento, é a idade cronológica, é a vivência, é a maturidade, é ser exemplo, é praticar. Porque você sabe que quando nós somos mais jovens, nós cometemos erros. Esses erros fazem parte da formação de uma personalidade. Tem uns que aprendem com o erro ,usam o erro para crescer, para mudar, outros não.

Então para mim, mestre é isso: é exemplo. Mas que tem que praticar. Ele não pode ser só aquele que tem o poder da persuasão e só falar. E, na prática, ser completamente o contrário daquilo que ele faz. Então, para mim, Mestre é exemplo.

Como atrair os jovens para a capoeira? Como fazer com que os jovens vejam a perspectiva na capoeira? A capoeira em si, por ela própria – os movimentos, a maneira de se jogar, a música, a harmonia, o frenesi que tem na capoeira – por si só já atrai. Dito assim quando a pessoa, o aluno se matricula, passa a fazer parte da capoeira. Além disso, na capoeira, ele tem uma doutrina positiva, depende de cada escola. Na nossa escola nós temos essa doutrina positiva. De dar oportunidade, de mostrar perspectivas através da capoeira. Não só sendo capoeirista, mas a capoeira também levando para outras profissões de classe, seus valores, transformando, educando, disciplinando, mostrando o caminho do bom viver, trazendo esperança.


O forte da capoeira é isso. Por exemplo, temos aqui no nosso grupo vários membros, vários professores que desenvolvem trabalhos sociais. Eu mesmo fiz quando dei aula. A maioria dos meus alunos eram da comunidade. Hoje, 80% são profissionais de capoeira. Hoje são todos mestres. Saíram do Serviluz, do Pirambu, da Serrinha, do Verdes Mares, do Baixa Pau (na Praia de Iracema). Eles tiveram essa oportunidade na capoeira. Então,essa é a força que a capoeira tem.

A minha ida para a Holanda foi uma decisão pessoal. Eu tinha vontade. Parece até um pouco engraçado, mas eu tinha dentro de mim, a vontade de não morrer sem conhecer o mundo e aprender a falar um idioma. Essas duas coisas foram fundamentais para mim. De ver uma outra cultura, de aprender com outras culturas, com outros costumes e ver isso de perto e aprender a falar o idioma. Eu aprendi o inglês, principalmente o inglês de rua, em um ano. Mas na rua, estudando e as pessoas me corrigindo. E depois foi a segunda língua. Foi o holandês, depois o francês e depois foi o espanhol. E agora um pouco do húngaro. Eu tenho essa curiosidade e quando eu chegava nesses países, eu também experimentava da culinária. Eu não ia lá atrás do feijão, nem do arroz.

Quando eu decidi ir eu disse a mim mesmo: eu só volto quando eu vencer, eu só volto com sucesso. Eu só volto no positivo.Não foi fácil, não. Você chegar numa terra onde ninguém conhecia a capoeira, costumes diferentes, línguas diferentes e toda essa diversidade. Depois você fazer aqueles holandeses abraçarem a capoeira. Eu falo do holandês porque foi onde eu aportei, onde eu cravei lá e botei o meu barco.

Eu me considero cidadão do mundo. Antes, eu fazia isso e não sentia. Não é coisa assim que eu seja demais, ou uma pessoa boçal. Mas eu sou reverenciado nos países onde eu passo. E homenageado por trazer a cultura brasileira, porque geralmente no evento de capoeira que nós organizamos lá fora, a capoeira é o carro chefe. Mas a gente leva todo um pacote cultural brasileiro. Na festa tem um forró. Na festa tem a caipirinha. Na festa, no jantar, ou é um baião de dois ou uma feijoada. Então você vê que a nossa culinária – um pouco dela – , o nosso coquetel famoso, que é a caipirinha.

O forró que hoje domina a Europa faz parte desse pacote que a gente leva, sendo puxado pelo carro chefe, que é a capoeira. Então eu penso que nós somos – há vários outros mestres também que fazem esse tipo de trabalho – nós somos embaixadores da nossa cultura lá fora. E para você ter uma ideia, hoje, o português é também empurrado pela capoeira. Porque a gente faz com que os capoeiristas estrangeiros aprendam a língua portuguesa, porque o nome dos golpes é falado em português, as músicas,em português. Então isso acelera, incentiva aos estrangeiros a aprender, a falar o idioma.

A mensagem que eu poderia dizer para finalizar é que a capoeira é um veículo muito forte, capaz de transformar as pessoas, de educar. Eu sou um exemplo disso.