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Mestre

Vicente Chagas

Vicente Chagas Gondim

Mestre em Reisado de Caretas e Bumba-meu-boi

Publicação no Diário Oficial do Estado

24 de setembro de 2007

Cidade/Residência

Região do Maciço de Baturité

Nascimento

2 de julho de 1937

Relato de Viagem

Vamos começar? É agora? Tô pronto! Mestre Vicente Chagas emendava uma frase na outra. Estava aflito para começarmos a sessão de fotos e a entrevista. Nós haviamos atrasado o horário combinado. Ele não deixou por menos: pensei que não vinham mais! Desde cedo, já nos aguardava em sua casa, no sítio Arábia, zona rural de Guaramiranga.Em nivel mais baixo que o da rua, cercada de vegetação nativa e de sítios de veraneio, o lugar era só silêncio. Quer dizer… seria, se o mestre, com um boizinho na mão, parasse um pouquinho de falar e pinotar. Ele nos fez dá boas risadas com sua irreverência e para repor a energia gasta com tanta animação tomamos um suco de rapadura delicioso.

(Cantando)

Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão /  Padrinho Ciço, fundador de Juazeiro e protetor do romeiro desse imenso sertão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Frei Damião que era nosso capuchinho, ele está com Jesus Cristo, já cumpriu sua missão / Eu nunca achei um mestre pra dá ni mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado /Eu nunca achei um mestre pra ni dá mim, se já deu já levou fim ou anda no  mundo encantado / Tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado / tô preparado pra brincar, brinco bonito / Eu sou o Mestre Expedito e sou um mestre respeitado.

“Gosto de ser mestre, não vivo mais preso só num lugar.”

O meu nome é Vicente Chagas Gondim. Faz 50 anos que moro nessa casa, nesse mesmo local, aqui no município de Guaramiranga. Eu desde criança gostava muito de brincar em reisado. Brincava com o pessoal mais antigo que já faleceu e continuei a brincadeira da gente. Como gostava muito de brincar, aprendi a fazer o boi, aprendi a fazer o cavalo, a burrinha. Tudo isso foi da minha cabeça sem ninguém me ensinar.

Às vezes quando eu ando por aí o pessoal pergunta: quem foi que te ensinou? Eu respondo: ninguém. Foi eu que aprendi, brincando. Quando eu ia brincar em certos lugares, eu ia olhar de que jeito era o boi… Da minha cabeça eu ia fazendo pequeninhinho e ia aprendendo. Aí aprendi. Então o pessoal ia atrás da gente pra brincar em reisado… começava no natal e terminava no dia 06 de janeiro. Quando terminava, se acabava mesmo! Ninguém dava mais valor àquela brincadeira depois dessa época do natal.

Hoje em dia é muito diferente porque apareceu o pessoal dando valor à cultura. Aí me procuraram para eu ser mestre da cultura de Guaramiranga. Então eu fiz uns trabalhos por fora, umas apresentações, o pessoal foi filmando meus trabalhos. Hoje eu sou mestre da cultura. Me orgulho do meu trabalho porque sou mestre da cultura e sou conhecido do mundo. E saio de casa, me ajunto mais os mestres, a gente debate os trabalhos da gente. Conversa com um, conversa com outro. Aí eu me sinto feliz por causa disso. Gosto de ser mestre, não vivo mais preso só num lugar. Porque no tempo que eu não era mestre eu não saia nem de casa quase. Hoje eu sou mestre e me reuno com os outros mestres dos outros lugares e a gente faz aqueles debates e isso tornou a minha vida mais animada do que era. É isso aí, eu me orgulho é disso, de ser Mestre da Cultura por causa disso.

O pessoal daqui dava valor a brincadeira da gente de reisado. Mas de um certo tempo para cá, quando eu não era mestre da cultura ainda e estava fazendo o boi algumas pessoas mangavam de mim, porque eu estava fazendo aquele boi. Mas eu não me importei e continuei, continuei. E hoje em dia muita gente, que às vezes mangava de mim, talvez tenha inveja do meu trabalho porque eu visito muito lugar.

Eu, com meu trabalho, já formei reisado de crianças e elas já brincavam na cidade, já brincavam por aqui. Todo mundo acompanhava, achando bom aquela brincadeira. Mas foi o tempo que as pessoas deixaram de chamar a gente para se apresentar… parou a brincadeira, né?! Não chamaram mais pra fazer o trabalho, parecia que não davam valor. Aí aquela brincadeira ia se acabando, … o trabalho ficava parado.
E estando parado fica duro continuar depois. Por que quando chega um dia que precisam da gente prá fazer um trabalho, é preciso ir atrás daquele grupo que já foi educado na brincadeira, aí como já faz muito tempo… os meninos dizem: eu não vou mais não! Aquelas moçotinhas dizem: eu não vou brincar mais não! Isso é uma tristeza para mim, porque aquele trabalho que eu tive ali ficou perdido. Vou ter que arrumar outras pessoas prá ensinar ainda, começando tudo de novo. Os vestuários eu já tenho. Me chamando, eu tô no ponto. Mas tem que ter o grupo e aí não tem quem me ajude nesse sentido.

Mas eu ensino, me procurando eu ensino. Eu ensino o pessoal pra aprender… Só que hoje em dia o pessoal não quer aprender. Querem aprender outras coisas. É mais fácil tacar o pé numa bola de futebol do que aprender brincar em reisado.
Isso não tem futuro não! Eles dizem. Eu chamo os meninos: vambora meu filho fazer uma brincadeira acolá! Pra continuar, né?! Pra não se acabar a brincadeira da gente. E eles respondem: eu não vou nisso, que não tem futuro e fica nessa arrumação.

Tem gente que às vezes, vem pesquisar trabalho meu de escola. Eu ensino como é que se faz. E ensino também nos colégios, faço visita, levo meu boizinho pequeninhinho pra mostrar aos alunos. Eles gostam muito e fica aquela festa boa, animada. E eles pedem que quando eu puder vá outra vez. E aquilo ali eu já tenho feito em muito canto. Porque aqui nós fizemos uma reunião, a gente fez um debate e eu disse para os encarregados da cultura que do jeito que estava indo, estava se acabando a brincadeira. Era bom que a gente formasse assim um meio de não se acabar… Foi quando começamos as visitas. Todos os meses eram três escolas que a gente visitava. Aí teve um tempo que não tinha transporte e as visitas se acabaram. Mas hoje em dia, precisando de mim, eu estando aqui em casa… me chamando em qualquer canto… venha me buscar que eu vou, pra não se acabar, não deixar o trabalho da gente cair… e eu não quero que essa brincadeira se acabe não. Eu vou e já chego cantando:
Ôh de casa ! / ôh de fora / Manjerona é quem taí / Ôh de casa ! / ôh de fora / Manjerona é quem taí / É o cravo / é a rosa / é a flor do bulgari / Esta casa está bem feita / por dentro, por fora não / Esta casa está bem feita / por dentro, por fora não / por dentro cravos e rosas / por fora manjericão / por dentro cravos e rosas / por fora manjericão / vi bater na fechadura / vi a chave a retinir / vi bater na fechadura / vi a chave a retinir / vi o arrasto da chinela / vi a porta se abrir / vi o arrasto da chinela / vi a porta se abrir / abre essa porta se quiser abrir / abre essa porta se quiser abrir / que nós mora longe / queremos nos ir / que nós mora longe / queremos nos ir / me abre essa porta por Nossa Senhora / abre essa porta por Nossa Senhora / que nós mora longe / queremos ir embora / que nós mora longe / queremos ir embora.


E eu ainda acho que a brincadeira do boi vai continuar. Sabe porquê? Porque se um dia eu falto, com minhas brincadeiras… tem muito trabalho meu gravado aí.