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Mestre

Zé Carneiro

José Alves Carneiro

Mestre Mateiro

Publicação no Diário Oficial do Estado

15 de maio de 2018

Cidade/Residência

Pacoti (Região do Maciço de Baturité)

Nascimento

1 de novembro de 1963

Relato de Viagem

Subir a serra do Maciço do Baturité é um deleite e encontrar o Mestre mateiro para uma conversa literalmente no meio da mata foi um momento encantado. Conversa sobre conhecimento, sobre a mata que é acolhedora mas também desafiadora, sobre as preocupações acerca do possível desastre ambiental que se avizinha. Numa caminhada por uma pequena trilha fomos instados pelo Mestre a sentir a mudança climática debaixo das árvores, o som do vento, o canto dos pássaros e a provar uma folha que adormece a língua. Pequenos fascínios para pesquisadores neófitos dos saberes da Mata Atlântica que ainda temos no Ceará.

(Cantando)

Eu subi terra de fogo, com alpargarta de algodão. As alpargartas se queimaram eu desci com pé no chão. Desci na ponta da nuvem por um estralo de um trovão. Pisei em terra firme, com dois crucifixos na mão. De um lado São Cosme e do outro São Damião. Em prece acode o cruzeiro da virgem da Conceição.

“Eu faço pontes entre a ciência e a mata, entre a ciência e a pesquisa.”

Meu nome é José Alves Carneiro. Reconhecido pelo estado do Ceará com a profissão de Mestre Mateiro. Sou mateiro há mais de 35 anos. Eu comecei muito jovem trabalhando. Na realidade foi em 82. Chegou uma menina aqui, a professora Eliete, uma bióloga da Universidade Federal procurando uma samambaia, natural aqui da serra. Atrás de uma espécie nova de samambaia. E aquilo ali me aguçou um desejo que eu tinha de trabalhar com a mata sem derrubar, sem agredir. Trabalhar em concessão com a mata, que era o que eu mais gostava, que era viver da mata, que era um sonho que eu tinha.

De tanto eu pedir, fui atendido, porque quando a gente pede muitas vezes , as coisas acontecem. Eu muito jovem, quando eu comecei a me entender no mundo, pedi a meu pai para ir à escola. Aprender a ler e a escrever, que meu sonho era aprender a ler a escrever e ser professor. E meu pai me disse: “meu filho a sua caneta vai ser a enxada e o seu caderno é a terra. Os meus filhos todos foram embora e você vai ficar comigo e eu não vou botar você na escola.” Mas eu sempre insisti. E de tanto eu insistir, um dia, ele me botou na escola.
Entrei na escola em uma idade mais avançada. A distorção de idade era muito grande. Não me entendia com os pequenos e os pequenos não se entendiam comigo. Fiquei revoltado e eu terminei abandonando.

Na realidade, eu não aprendi na escola. Mas aprendi de outra forma. Aprendi a ler a natureza. Eu não leio livro mas eu leio a natureza. Eu tenho conhecimento empírico. Muitas vezes as pessoas perguntam: cadê teu currículo? E eu respondo: meu currículo está aqui na minha cabeça. Há 58 anos que meu currículo está aqui.

Eu vivo para ensinar as pessoas. É a minha profissão e eu gosto, me sinto bem quando as pessoas vêm. Eu já recebi biólogos, cientistas, professores. Ultimamente estou trabalhando com uma psicóloga, fazendo umas expedições na serra, na mata. E é assim: eu passando os meus conhecimentos para ela e ela passando os dela para mim. Porque conhecimento ele não é dado, não é vendido. Ele é passado. Você passa o conhecimento e ele volta para você. Conhecimento é uma troca. E sem pesquisa, o Ceará, o Brasil, o mundo perdem, porque é através da ciência e da pesquisa que temos os grandes cientistas, os grandes mestres, os grandes professores.

Eu sou um pequeno Mestre. Mas eu procuro dar o melhor de mim. Extrair a essência. Quando eu vou fazer uma coisa eu faço com muita consciência, muita tranquilidade. Exerço minha profissão com muita lealdade, com muita honra, com muita fibra. Não faço nada por brincadeira. O que eu faço é de verdade. É de coração. Se vou fazer uma trilha, uma expedição, uma pesquisa, não vou fazer por fazer. Eu não vou chegar no mato tirar uma planta, cortar uma planta só por cortar. Se eu tirar uma planta, tirar um galho é para pesquisa. Mas eu seleciono minha pesquisa, não vou sair fazendo pesquisa para todo mundo. Minha pesquisa hoje é dedicada à Universidade Estadual do Ceará – UECE. Muitas outras universidades também vêm aqui: UFC, UNILAB, UFPI, UNIFOR. Assim, eu convivo mais com os alunos do que com os locais. O pessoal da comunidade às vezes diz que eu quero ser “bichão importante”. Eu respondo: não quero ser bichão. Eu sou o Zé. Esse cara que herdou esse dom da natureza. Deus me permitiu que a natureza me presenteasse com esse conhecimento, de abrir caminhos

Eu não construo muros. Eu faço pontes entre a ciência e a mata, entre a ciência e a pesquisa. Eu já identifiquei várias espécies novas. Identifiquei, não. Coletei. Primeiramente foi um calanguinho, em 2004. Depois veio a cobra, a arranha e o sapo. Eu já perdi a conta. Mas isso não é importante para mim. É importante para o Ceará. O que eu faço é para o bem do Pacoti, do Maciço e do Ceará. Para o bem do Brasil e do mundo.

Esse conhecimento eu adquiri com o longo do tempo. Foi querendo aprender a descobrir. Fazer a descoberta das espécies que tem na natureza. A natureza me presenteou com uma coisa que eu não tive no livro. Eu encontrei buscando nos anciãos, perguntando que planta é essa, que árvore é essa, que bicho é esse? Isso eu fui acumulando ao logo do tempo.
Eu lembro, eu tinha uns nove anos… fomos pro mato – menino pequeno, a gente tinha aquela coisa de andar no mato. Não tinha televisão, não tinha internet, não tinha whattsapp. O que a gente tinha era o mato para andar. Juntava um grupo de menino e ia para o meio de mato, para a água, tomar banho…

E um dia me despertou: nós estamos aqui no meio de uma riqueza. Isso aqui é um livro. A gente tem que lê isso aqui, disse para os colegas. E eles mangaram de mim: “quem vai ler pau e ler passarinho? Quem é que vai querer saber de mato, de pássaro? A não ser pra matar, pra comer assado. Pegar um pra vender? O resto é só o resto.”

Mas o resto que eles diziam foi o que eu aproveitei. Nada se destrói e tudo se transforma. Você tem de transformar o resto em oportunidade de vida. Eu comecei a me interessar cada vez mais, a tomar gosto pela natureza, pelas cosas boas que ela tem. Cada um tem de fazer sua parte. Se o ser humano, cada um, fizesse sua parte, teríamos um mundo melhor. A natureza é o começo de tudo. E não o fim. É um ciclo! Que quando tá terminando começa tudo de novo. Criou-se essa ideia que tudo tem um fim. Não é assim. Tudo tem um começo, tem um meio mas depois começa de novo.

O que é o mateiro? O mateiro é aquela pessoa que conduz o pesquisador, que conduz pessoas na mata, na trilha, na cidade (fazendo uma trilha ecológica na cidade). O mateiro é multiuso. Eu me adapto a tudo. O mateiro não é só aquele que vai para a trilha e volta. É aquela pessoa que vai mostrando as espécies. Tudo na natureza se aproveita e nada se “injeita”. O mateiro é essa pessoa que tem essa visão de transformar o invisível no visível.

O mateiro sente a natureza e lê a natureza de uma forma que outras pessoas não percebem. A natureza tem os seus encantos, tem suas belezas mas também tem seu lado arredio. A natureza não é essa coisinha, essa folhinha, esse verdinho. A natureza ela é dura. Ela também machuca, ela também mata. Ela constrói e também destrói.

Muitas vezes a gente perde tempo olhando coisas supérfluas na internet e esquece de observar a natureza. Observar um pássaro cantando, de ver o vento batendo nas árvores e fazendo um som, de ver um bicho passando, esquece de apreciar uma ave bonita. Observar uma árvore frutífera e porque ela dá tantas frutas não só para se propagar, mas para alimentar a fauna e os filhos da mãe natureza.

Ser um Mestre é ser pequeno. É ser um cara que respeita as opiniões, respeita a ideia dos outros, que respeita a diversidade. Ser um Mestre é ser ímpar, ser uma pessoa íntegra, dentro da ética e da posição que ele exerce. Tem de ter uma ética, um controle, uma postura de não está se expondo demais, mas também não guardar tudo para si. Ser um Mestre é jogar o seu conhecimento para fora. É se abrir como um livro. Um mestre é um livro que tem de ser aberto. Eu fui condecorado em 2017 e em 2018 eu fui empossado como Mestre da Cultura. Eu recebi a notícia que tinha sido intitulado como Mestre da Cultura, fazendo uma corrida de mototáxi. Primeiro mestre mateiro do Pacoti, do Ceará, do Brasil e do Mundo representando o Maciço. Porque eu sou do Pacoti mas eu represento o Maciço. Foram 153 que se inscreveram e desses passaram 15 pessoas e fiquei em décimo segundo. Para mim foi uma gratidão muito grande.

Eu me sinto muito honrado de ser procurado pelas pessoas, pela parte científica. Minha posição é dar uma contrapartida para a ciência, para os biólogos, para os cientistas, para quem me procurar. É um prazer muito grande, uma satisfação e uma gratidão eu ter esse pequeno conhecimento para eu passar para as pessoas. E o que me faz sentir feliz é ser essa pessoa que está passando o conhecimento. E chamar a atenção para a transformação na natureza. No Ceará e no Brasil.

Estão destruindo a Amazônia, destruindo a Mata Atlântica e o bioma do Maciço. Todos querem ser donos de um pedacinho. Não dá um pedaço para todo mundo! Para que destruir mais? Mas eles querem fazer resort, fazer água-parque. Gente isso não comporta! A serra está morrendo e daqui há trinta anos não terá um pingo d’água. E se não tiver água, não tem serra, não tem nada. Isso eu tô falando porque eu conheço. Eu leio a natureza. Nosso clima aqui, antigamente, uma hora dessas aqui (por volta de 16h) estava todo mundo encasacado, bem agasalhado O frio, do ano de 1985 para cá, já foi embora. A serra está morrendo. Nós estamos vivendo uma transição muito difícil. Desmataram o sertão quase todo. Nós estamos arrodeados de caatinga. Mas o pessoal diz: é só a caatinga. Não é só a caatinga. A caatinga também tem seus encantos. A caatinga tem seu valor, tem sua qualidade. Porque a caatinga não é só pau branco. Ali tem várias espécies que estão pedindo socorro. Elas perdem suas folhas para não perderem a vida. Perdem suas folhas para se resguardar, se proteger do tempo quente, do clima. Quando bater um pingo de chuva ela se transforma, desabrocha do chão e a vida flui. Já a mata verde, já o brejo, não! O bioma alto, aqui e nas outras serras do Ceará, do Brasil e do mundo é verde por natureza mas tem um preço a pagar que é não desmatar. Se não fizer isso, quem vai pagar o preço é o próprio homem. O Maciço já abasteceu Fortaleza com água. Não era do tamanho que é hoje, mas Fortaleza já era uma metrópole na década de 60. O Acarape abastecia Fortaleza folgado, com todas as suas lojas, indústrias, com todos os seus habitantes. Dava pra tudo e sobrava um pouco. Se você ver o Rio Pacoti está morto. O rio já morreu e esse rio não volta mais na forma que era. Jamais vai deixar de existir, mas não vai ser o mesmo.

Diziam os Carões, os verdadeiros donos dessa terra, os índios Carões,
que quando o homem dominasse as nascentes eles dominariam todo o litoral. E foi isso que aconteceu. Não foi dominando a praia que veio a degradação do nosso Brasil, da nossa serra, dos nossos litorais, não! Foi porque o homem devorou as nascentes, conquistou tudo, detonou tudo. Porque os índios tinham isso aqui como santuário. Os índios respeitavam esse monte, esse Maciço.

E é assim… Não se pode ignorar a natureza. A natureza é sábia. Nós é que somos ignorantes. A natureza tem o seu quê e o seu saber. Porque isso vai acontecer ou vai deixar de acontecer. Nós é que queremos quebrar, é que queremos bagunçar tudo. Achamos que estamos arrumando as coisas, mas nós estamos é desarrumando. Quando você derruba uma mata esplêndida, você não está derrubando só mata. Você destruindo a própria natureza, destruindo a sua casa. Está desarrumando a sua própria casa. A natureza é a nossa casa.